sábado, 28 de março de 2015

O CANCEROSO IMAGINÁRIO




Ronaldo Correia de Brito


Juro que não estou com câncer. Pelo menos, por enquanto. Mas durante cinco dias vivi a possibilidade de ser portador de um melanoma maligno, uma das formas mais traiçoeiras da doença. Pela primeira vez nesse jornal, onde escrevo há cinco anos, cedo a palavra ao médico, embora sempre acrescentem junto ao meu nome as duas profissões que exerço. Certamente desejam associar-me a Guimarães Rosa, Jorge de Lima ou Pedro Nava, que além de médicos foram escritores. Mas ser discípulo de Hipócrates não garante um bom futuro literário a ninguém. Sobretudo nos tempos de hoje, em que a medicina se tornou uma profissão técnica, afastando-se da filosofia, da religião e da arte.

Soube que poderia estar com câncer no consultório de um dermatologista. Um pequeno sinal nas costas era suspeito: possuía coloração escura, contornos irregulares, superfície plana. Eu fora me consultar por causa de um prurido, uma coceira como dizem os leigos. O especialista me examinou, fez careta e disse que eu deveria retirar o sinal o mais breve e enviar a peça – é assim que chamamos o fragmento de biópsia – para exame histopatológico.
Até o momento de ouvir a fala do colega médico, eu estava cheio de planos para o futuro: plantar café num sítio em Taquaritinga, publicar um novo livro de contos, morrer só depois dos noventa anos. Agora, ele falava numa voz cavernosa que minha sobrevida poderia ser de oito anos ou de ridículos três meses. Dependia da evolução do melanoma, se o diagnóstico fosse confirmado. Enquanto dobrava papéis com receitas e solicitações de exames, eu me perguntava o que acontecera comigo. Era o mesmo Ronaldo Correia de Brito de quinze minutos atrás – o tempo que durou a consulta: saudável, cheio de apetite e vontade de viver. Não, não era mais. Um médico detentor do poder da ciência lançara dúvida sobre o meu frágil destino no planeta. Sempre achei que iria morrer, nunca duvidei disso. Mas assim de repente, sem mais nem menos, sem haver cometido transgressão ou crime. E com a sentença pronunciada por um cara mal humorado, indiferente ao meu pavor. Imaginava anjos soprando trombetas, nessa hora solene.

Liguei para um amigo cirurgião oncologista. Ele foi categórico: Se você não retirar o sinal para a prova dos nove, nunca mais terá sossego. Regateei: Mas estou perfeito, não dou um espirro, acabei de dosar o colesterol e os triglicerídeos, minha pressão é de criança. Conversa fiada. A dúvida me comia por dentro. Retirei o sinal e aguardei o resultado. Foram cinco dias terríveis. Comportava-me como candidato a defunto, inventariando as pequenas coisas, lamentando tudo o que deixaria para trás. Por azar, enquanto aguardava o resultado da biópsia, uma colega de turma morreu de linfoma e uma vizinha de carcinoma, nomes do “dito cujo”. Apostei que o próximo seria eu.

Não fui. O histopatológico conclui por uma queratose, lesão besta e, por isso mesmo, ótima para mim. Decidi mudar radicalmente de vida, o que ainda não fiz. Passei da condição de quase morto para a de ressuscitado.

Admiro os progressos na medicina, os procedimentos cirúrgicos por videoendoscopia, os diagnósticos precoces através de exames laboratoriais e imagens. É possível extirpar tumores com raios laser; a cirurgia de catarata tornou-se simples; a quimioterapia e a radioterapia diminuíram a mortalidade do câncer. Uma altíssima tecnologia a serviço do diagnóstico transformou os médicos em super especialistas, homens cibernéticos. Pena que a técnica, do grego technikós, que significa relativo à arte, passou a significar estritamente o domínio de um instrumental científico, muitas vezes mecânico. A arte, no seu elevado sentido de busca do Bem e do Belo, cedeu lugar à indústria ou ao mero artesanato.

Para os gregos, a cura significava a busca do autoconhecimento. Na entrada do oráculo de Delfos, uma inscrição orientava os que procuravam ajuda: “Conhece-te a ti mesmo”. A medicina recorria à magia simpática e nunca prescindiu da relação entre médico e paciente, de gestos simples como o olhar, o toque, a escuta e a fala. Uns poucos ainda apostam nesse modelo de cura, nos programas de medicina de família e comunidade, em assistência básica e educação, na necessidade de contratar médicos, mesmo estrangeiros, que vivam próximos às populações carentes e desassistidas. As novas turmas de doutores saem da faculdade buscando especialidades lucrativas, aparatos tecnológicos em que a proximidade com o doente é cada vez menor. Sentem-se ameaçadas pelos programas de assistência básica, que supostamente diminuem o lucro, o prestígio e o poder.

Quando os gregos abandonaram o pensamento mágico, criando a ciência, também inauguram uma nova maneira de ver o homem e de buscar a sua cura. Esse novo olhar não nega o humanismo essencial à prática médica, não suprime a necessidade do toque das mãos, opondo a ele o sacolejo de um aparelho de ressonância magnética. Os dois métodos se complementam.

O dermatologista agiu corretamente ao indicar a retirada do sinal. Não questiono o procedimento. O que nós médicos precisamos rever é o poder que assumimos de arbitrar sobre a vida e a morte. Algumas sentenças, pronunciadas sem maior compromisso, causam transtornos irreversíveis nas pessoas.

Os escritores sempre ironizaram a empáfia do médico e fizeram dele as piores caricaturas. Mas ninguém o tratou pior do que o teatro italiano. Imagino o que esses caricaturistas criariam em nosso país de comédia, onde candidato político dirige o carro embriagado e o senador mais bem votado faz propaganda de cerveja.

FONTE: Jornal O Povo


Ronaldo Correia de Brito - Nasceu em Saboeiro no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco.
Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no ano de 2007. Escreveu os livros de contos As Noites e os Dias (1997), editado pela Bagaço, Faca (2003), Livro dos Homens (2005), e a novela infanto-juvenil O Pavão Misterioso (2004), todos publicados pela Cosac Naify. Dramaturgo, é autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, Arlequim, e o romance Galiléia pela Alfaguara. Retratos Imorais - Alfaguara / Objetiva, Estive Lá Fora-Alfaguara / Objetiva. Escreveu durante sete anos para a coluna Entremez, da revista Continente Multicultural, e atualmente assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine e coluna no Jornal O Povo (Ceará).

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