quinta-feira, 16 de maio de 2013


A maior de todas as espiãs

Enfermeira e poliglota, a francesa Louise de Bettignies montou toda uma rede de espionagem para a Inglaterra e ajudou a combater a Alemanha na primavera de 1915. Desmascarada, foi presa e morreu no cárcere 
Louise de Bettignies

Para os ingleses, Alice Dubois. Para os franceses, Pauline. Seu nome verdadeiro, Louise de Bettignies. Independente, viajada, fluente em sete idiomas (francês, alemão, italiano, espanhol, russo e tcheco), era uma mulher avançada para sua época e, por sua atuação como espiã na Primeira Guerra, é considerada a precursora da luta na clandestinidade e das heroínas da Resistência Francesa na Segunda Guerra. Chegou a ganhar o apelido de

Joana d’Arc do Norte.

Sétima criança de uma família de nove filhos, nasceu em 15 de julho de 1880, em Saint-Amand-les--Eaux, norte da França, na fronteira com a Bélgica. Fez excelentes estudos, apesar dos reveses de fortuna que obrigaram seu pai, em 1877, a vender a fábrica de porcelana da família. Aos 26 anos, caso raríssimo para uma francesa, ela conseguiu ser admitida no Girton College, o departamento feminino da Universidade de Cambridge. Ganhando a vida como professora particular, mais tarde ela pôde ser vista na Itália, na Alemanha, na Tchecoslováquia ou na Áustria, onde esteve furtivamente com o imperador Francisco José e venceu uma partida de xadrez contra o filho do kaiser Guilherme II, o príncipe herdeiro Rupprecht da Baviera.
 

O arquiduque Francisco Ferdinando, que viria a ser vítima, em Sarajevo, do atentado que desencadearia a Primeira Guerra Mundial, chegou a propor a ela que se tornasse preceptora dos filhos dele. Em vão: para isso, Louise seria obrigada a abrir mão de sua nacionalidade francesa.


Como enfermeira, por vezes ela cuidava dos feridos do exército do kaiser Guilherme II, na área ocupada pelos alemães na região norte da França, desde o início da Primeira Guerra. Isso porque Louise visitava com frequência o irmão, vigário de Orsinval, próximo a Quesnoy. Numa dessas ocasiões ela acabou sendo alvo de um controle infeliz, feito por Rupprecht da Baviera, em visita àquele setor. Infeliz porque , afinal de contas, toda a fase do pré-guerra – o castelo de Holeschau, a partida de xadrez, as conversas com Elvira da Baviera – tinha supostamente criado laços.


Essa capacidade de se imiscuir entre os alemães chamou a atenção dos serviços secretos, tanto da França quanto da Inglaterra. Em fevereiro de 1915, um oficial francês se encontrou com ela discretamente, em sua residência de Saint-Omer, localidade que abrigava membros do quartel-general do corpo expedicionário britânico comandado pelo general John French. O motivo do encontro era descobrir se Louise de Bettignies aceitaria se tornar agente secreto. A jovem Louise não aceitou nem descartou a possibilidade, deixando no ar um “talvez”. Pouco depois os britânicos fizeram a ela um convite semelhante. O major Walter Kirke, comandante do serviço de informações militar inglês (Military Intelligence) na França gostaria de poder contar com o talento extraordinário da moça para falar tantos idiomas, e com tamanha fluência.

A inteligência francesa ficou incomodada com o convite feito pelos ingleses, mas não havia o que fazer. Os franceses cederam e Louise caiu nos braços do MI 6. Mas havia etapas intermediárias a cumprir antes de entrar em ação. Ela precisou passar por um estágio de formação no escritório interaliado de Folkestone. Lá aprendeu sobre códigos secretos, tintas invisíveis, combinação sobre como indicar um ponto sensível em um mapa, como identificar as unidades alemãs, as peças de artilharia. Nesse período, conheceu o coordenador britânico do serviço de informações, o major Cameron, vulgo “Tio Eduardo”. Para o MI 6, Louise passou a ser “Alice Dubois”, e a rede de contatos que ela tinha a missão de estabelecer na região norte da França e na Bélgica, seria chamada “o serviço Alice”.


De Folkestone, QG dos serviços secretos aliados, ela foi para a Holanda, que se manteve neutra no conflito. Pouco antes de atravessar a fronteira belga, o oficial inglês que a acompanhava declarou bruscamente: “Se for apanhada, não poderemos fazer nada por você, mas, se isso acontecer, terá sido certamente por sua culpa. Boa sorte”. Impossível ser mais claro...


Uma empresa comercial holandesa de fachada, a Companhia Cerealista de Flessingue, serviu de disfarce e estrutura logística em Bruxelas. Outro comando militar clandestino estava instalado em Lille, no norte da França, perto de Béthune. Os centros ferroviários mereciam atenção especial, como, por exemplo, os de Tourcoing ou Lille, por onde transitavam as tropas e material alemães, rumo ao fronte de batalha.


O braço direito de Louise era uma enfermeira do norte chamada Marie-Léonie Vanhoutte, de 27 anos, conhecida como “Charlotte ” no serviço Alice. Os demais colaboradores da rede eram de profissões e regiões das mais variadas: Lenfant, ex-comissário especial (informações gerais), era de Tourcoing; Willot, professor da Faculdade Católica de Medicina de Lille; Marsille, chefe eletricista; o velho Pinte, professor do Instituto Técnico de Roubaix; Verstappen, cônsul da Bélgica em Haia; a senhorita L’Hermitte e o abade Chavatte, em Haubourdin; Horst, responsável pela infiltração de seus compatriotas militares belgas. Essa era a rede mínima para poder comandar um conjunto de cerca de 100 agentes profissionais.
Túmulo de Louise

Ao todo, “Alice Dubois” faria algumas dezenas de idas e vindas entre Folkestone e o continente. Em meados de 1915, “Tio Eduardo” a apresentou ao general George Macdonogh, diretor do serviço militar de informações, assim como ao próprio general French. “A atividade do serviço Alice é extremamente importante, você consegue intensificar seus esforços?”, perguntou o general French. “Sejam lá quais forem os riscos, a resposta é sim!”, respondeu a jovem. “Cuide-se ”, aconselhou o militar.

Antes de voltar à luta clandestina, Louise viu pela última vez a mãe, Julienne, em Touquet: “Tenho o pressentimento de que em breve serei capturada”, admitiu. “E então, o que pode acontecer com você?”, perguntou a mãe. “Eles vão me fuzilar, eu imagino.”


No início de setembro, as mensagens do major Cameron a informavam sobre boatos que corriam, a respeito da infiltração de sua rede de contatos. Não sem razão: os alemães levavam o serviço Alice muito a sério. Léonie foi presa em 15 de setembro de 1915. Em 20 de outubro foi a vez de Louise.

As duas mulheres foram condenadas à morte em março de 1916, por espionagem. A pena foi comutada em prisão perpétua por conta da indignação que havia sido provocada pela execução de duas mulheres, a enfermeira inglesa Edith Cavell, em 12 de outubro de 1915, e a jovem patriota belga Gabrielle Petit, em 1º de abril de 1916.


Nas prisões belgas e, em seguida alemãs, um destino diferente aguardava as duas francesas. Apesar dos cuidados da companheira de infortúnio, Louise morreria em 27 de setembro de 1918, em um hopistal em Colônia, Alemanha, em decorrência de uma cirurgia feita sem os cuidados mínimos de higiene, em um cárcere de Sieburg. Léonie foi libertada após o armistício e viveu por mais meio século, falecendo em 4 de maio de 1967.

RÉMI KAUFFER é professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po) e autor de livro sobre serviços secretos na França.