domingo, 1 de maio de 2011

O número de páginas de um livro não diz do seu valor


*Ronaldo Correia de Brito


Juan Rulfo
César Vallejo


O romancista Juan Rulfo bem poderia ter escrito Não mora mais ninguém, poema em prosa do peruano César Vallejo, pela maneira semelhante como lida com os vivos e os mortos. Vallejo afirma: "O lugar por onde um homem passou nunca mais será ermo. Somente está solitário, de solidão humana, o lugar por onde ainda nenhum homem passou. (...) Todos de fato deixaram a casa, mas na verdade todos continuam dentro dela. Não, não é a lembrança deles, são eles mesmos que ficam".

Com a fatalidade de quem não se desvencilha da memória e do passado, Rulfo criou uma obra inquietante, silenciosa, em que as vozes de cada história narrada soam como se fossem a nossa própria voz.

Romance ou novela, como preferirem chamar, Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, influenciou gerações de escritores latino-americanos, mesmo os que nunca o leram. Algo parecido ao que aconteceu na Rússia com O Capote, conto de Nicolai Gogol. Segundo Dostoievski, toda literatura russa posterior a Gogol é filha dessa narrativa meio absurda, meio kafkiana, a história de um homem que perde o seu capote e na tentativa de encontrá-lo se extravia em meio à burocracia.


Gogol
Dostoievski


Atribui-se a Rulfo a paternidade do realismo mágico, também conferida a Alejo Carpentier. Mas é bem distinta a atmosfera onírica de Pedro Páramo daquela que consagrou Gabriel Garcia Márquez em Cem Anos de Solidão, e beirou o exotismo com Isabel Allende.


Alejo Caspentier
Gabriel G.
Marques
  

 










Isabel Allende
 Em Pedro Páramo, os mortos falam e caminham, afigurando-se mais reais e tangíveis do que os próprios vivos. Eles parecem ter a função de extraviar os sobreviventes de Comala, um lugar estranho imaginado por Rulfo, esfumaçado e poeirento, onde o tempo possui uma outra medida e as vozes e lamentos das pessoas brotam de abismos.





Para desencaminhar-se nesse infra-mundo, um filho de Pedro Páramo se desloca na companhia de um tropeiro, realizando o desejo da mãe de que ele conheça o pai que o gerou e pise a terra de Comala, de onde ela saiu para nunca mais voltar: "Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo. Minha mãe que disse. E eu prometi que viria vê-lo quando ela morresse".

Ao final da leitura, nos perguntamos se Comala existe de verdade. Se Pedro Páramo é apenas o espectro de um poder insano e absoluto, que se arruína e leva consigo as pessoas e o mundo em volta, ou se é um homem que parece nada temer, mas que se assombra com a noite e seus fantasmas. Sem resposta, repetimos as mesmas perguntas a cada nova leitura desse livro infinito e único, apesar de suas páginas tão escassas.

 

*Ronaldo Correia de Brito - Nasceu em Saboeiro no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no ano de 2007. Escreveu os livros de contos As Noites e os Dias (1997), editado pela Bagaço, Faca (2003), Livro dos Homens (2005), e a novela infanto-juvenil O Pavão Misterioso (2004), todos publicados pela Cosac Naify. Dramaturgo, é autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, Arlequim, e o romance Galiléia pela Alfaguara. Retratos Imorais- Alfaguara / Objetiva. Escreveu durante sete anos para a coluna Entremez, da revista Continente Multicultural, e atualmente assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine.

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