quinta-feira, 3 de março de 2011

A HUMILHAÇÃO /  INVISÍVEL



por Luíz Horácio Rodrigues




As personagens de Invisível, Paul Auster cabem em A humilhação, Philip Roth e vice versa, sem prejuízo para roteiro e cenário.




Humilhação, segundo o dicionário Aurélio, também significa rebaixamento moral. Adam Walker, de Invisível, é um de seus representantes. No mesmo dicionário, encontramos para Invisível: que se esconde, não se deixa ver, que se recusa a receber qualquer (ou determinada) pessoa. O ator de teatro Simon Axler, protagonista de A humilhação, se enquadra perfeitamente nessa definição.




Philip Roth
Como você pode perceber, caro leitor, traços comuns unem esses dois livros intensos e indispensáveis.


Em A humilhação temos um ator que num determinado dia perde, ou esquece, a capacidade de representar. À perda do talento une-se o medo, o pânico que o impede de sequer cogitar subir ao palco. Logo ele, considerado "o último dos grandes atores do teatro clássico" americano. A partir daí o leitor mergulhará no tema preferido, ou seria o único tema de Philip Roth?, o declínio, o fim. A morte é uma nuvem que paira sobre a obra de Philip Roth. Aqui veste o uniforme do suicida.


Invisível, por sua vez, é um surpreendente, complexo sem ser hermético, romance de formação com tempero na dose exata; crime, loucura, ofensas, incesto, livros dentro do livro.



O ator Axler justifica sua saída de cena com o esgotamento do impulso. Tal impulso seria o sexual? Pode ser,visto que sua súbita melhora ocorre quando se apaixona por Pegeen,lésbica, filha de um casal de velhos amigos, trinta anos mais nova. Nessa mesma trilha o leitor encontrará, em Invisível,o episódio do incesto. O que leva a este aprendiz que ora redige estas pensadas linhas a suspeitar que o impulso sexual, o desejo, também seja uma necessidade e sendo assim carregue a prerrogativa de superar as questões morais. O intrincado enredo de Auster lança nuvens de ambigüidade sobre a questão do incesto,pode ter sido tão somente fruto da imaginação de Walker. Mas quem arrisca afirmar que imaginar não signifique desejar?



De um jeito ou de outro Auster confirma o que diz Maurice Blanchot (1), La littérature est le langage qui se fait ambiguité. Linguagem aliada a criatividade , um autor que entrega ao leitor o que de melhor pode permitir a influência de Samuel Becket, de Sartre, e um Joyce excitantemente saboroso.





Maurice Blanchot

Semelhantes estruturalmente, o livro de Auster apresenta quatro partes enquanto o de Roth, segundo a tradição do teatro clássico é apresentado em três atos. As semelhanças cessam aqui. Humilhação segue a tradição das narrativas lineares, o leitor segue confortavelmente a cronologia.




Paul Auster
Os atos são bem diversos


No primeiro, o leitor se defrontará com a angústia do ator em crise, algo semelhante a síndrome do pânico, que o impede de exercer sua profissão, cogita suicidar-se.Logo a internação numa clínica.O segundo ato traz à cena um Simon Axler apaixonado pela filha de antigos amigos seus, lésbica, e com interesse renovado pela vida e pela profissão.Examina inclusive a possibilidade de ter um filho com Pegeen. A humilhação, a derrota, o ingênuo que acreditou numa relação impossível, é descrita no terceiro e último ato. Axler consegue, enfim, representar. Faz do sótão o seu palco na cena final de A gaivota, de Tchécov, jovem aspirante a escritor que se sente um fracassado em tudo, desesperado com as derrotas no trabalho e no amor. A última cena do livro, a última cena da vida de Simon Axler.






Humilhação é uma ode ao fracasso, Ele perdera a magia. O impulso se esgotara, essa a fala de abertura do drama de Roth. Uma história de cartas marcadas.Inclusive o romance de Axler com Pegeen permite ao leitor antever o desfecho trágico. A qualquer momento Pegeen pode retorna a sua rotina homossexual, ela não o ilude. Não há necessidade, Axler se encarrega disso.



A impossibilidade de representar, de memorizar seu texto, o medo de subir ao palco, fica em segundo plano diante da relação Axler/Peggen. O que a princípio leva o leitor acreditar que uniriam o útil ao agradável, conduzi-la a uma vida hetero em contrapartida ela seria o motivo de seu retorno aos palcos, não se confirma. Axler perde a autenticidade, seu único bem ainda preservado. A humilhação é de um pessimismo a toda prova. Um confronto com a morte, sem efeitos especiais, como costuma ser o grande teatro.



Invisível, se não se alinha a obra de Roth, também não chega atuar como antagonista. Há muito do absurdo na morte, no suicídio ainda mais, na luta pela afirmação da identidade, no vazio cruel da solidão. Talvez o mais absurdo, o mais bizarro dos caminhos, seja aquele que conduz à ilusória justificativa para o sentido da vida.


Se a morte é uma nuvem sobre a obra de Philip Roth, em Invisível temos os mortos e a culpa. Você recorda o que leu acima quando citei James Joyce? Então leia o conto Os mortos, do livro Dublinenses(2) :Ele próprio dissolvia-se num mundo cinzento e incorpóreo. O mundo real, sólido, em que os mortos tinham vivido e edificado, desagregava-se.





À "presença" dos mortos junte a culpa, lembranças acendendo remorsos, fortalecendo medos. O medo é bom, continuei, repetindo as palavras que ele mesmo tinha usado em sua primeira carta, o medo é o que nos leva a correr riscos e ir além de nossos limites normais ...



Recordar. Adam Walker recorda o tempo em que era um aspirante a poeta e estudante de letras na Universidade de Columbia,corria o ano de 1967, seu encontro com o professor Rudolf Born e sua misteriosa companheira, Margot . Conheceram-se numa festa e logo o professor apresentaria seu plano; financiar uma revista literária, transformaria desse modo o estudante e editor responsável. Adam desconfia, mas o dinheiro farto não permite que escape do projeto de Born. O mistério não cerca Margot, apenas. O mecenas também é pleno de pontos obscuros.


Certa noite, os dois andam pelas ruas, e acontece uma tragédia. Fator determinante para o fim das relações afetivas e profissionais entre Born e Walker. A história,a partir daí, terá suas cenas em Paris.



Adam Walker, ao contar a história, está com mais de sessenta anos, e não consegue dar conta de tamanha complexidade, a memória o trai, a expressão exige rigor. Entram em cena outros personagens. O escritor James Freeman, um antigo colega de Walker. É ao escritor que Walker envia capítulos de seu livro na intenção de obter ajuda para sua conclusão. Quanto à barreira que com que ele havia topado, escrevi que todo mundo em algum momento dá de cara com barreiras desse tipo, e na maioria das vezes a condição para ficar com um bloqueio provém de alguma falha no pensamento do escritor - isto é, ele não compreende plenamente o que está querendo dizer ou, de modo mais sutil, abordou seu assunto por um ângulo errado.



Logo entrará em cena Gwyn, irmã de Walker, vem à tona o incesto, um dos pontos altos da narrativa de Auster. Terá sua vez também Cécile, enteada de Born, que nutriu uma paixão por Walker e escreveu num diário detalhes daqueles tempos. O final de Invisível é de fácil previsão, o que não diminui em nada seu brilhantismo.



Em tempos de literatura cansada,ou obediente às leis do mercado, Paul Auster oferece ao leitor um romance tecido por diferentes vozes e tempos narrativos. A generalidade está em não tornar tais alternâncias um obstáculo à compreensão do leitor. A leitura flui, os fantasmas da narrativa acordam, os meus também. Faço votos que ocorra o mesmo com os seus, paciente leitor.



Sugestão: comece a leitura por A humilhação. O invisível, desde o nosso nascimento está a nossa espera.




  • (1)BLANCHOT, Maurice. De Kafka à Kafka,Édittions Gallimard, Paris,1981
  • (2)JOYCE, James. Dublinenses, in Os mortos, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2002

*Luíz Horácio Pinto Rodrigues - Natural de Quaraí, pequeno município gaúcho na fronteira com o Uruguai, é formado em Letras e faz mestrado na mesma área. Viveu sua juventude na terra natal e em Porto Alegre, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou em Letras e passou cerca de vinte anos ali, escrevendo e colaborando com páginas literárias de várias publicações. Sua principal obra é a denominada Trilogia Alada, inaugurada com Perciliana e o pássaro com alma de cão, seguida de Nenhum pássaro no céu, e encerrada agora com Pássaros grandes não cantam.
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