sexta-feira, 30 de setembro de 2011

UMA FRAÇÃO DO TODO



* Luíz Horácio Rodrigues




Não admiro tampouco invejo aqueles que alardeiam não ter medo da morte. Não temer a morte é não ter medo de morrer. Essas pessoas me assustam. Temo a morte e as maneiras de morrer. Li e reli Sêneca: “Deve-se aprender a viver por toda a vida e, por mais que tu, talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer”. Não funcionou.

Sêneca


Uma fração do todo é um livro descontraído e pretensioso. Descontraído por se tratar de uma comédia, pretensioso por pretender abarcar mais que uma fração do todo, vai de uma análise profunda da solidão ao exame pormenorizado da vida em sociedade. Consegue ser trágico, irônico e engraçado. Ao mesmo tempo. Na dose exata às pretensões do mercado. Tudo bem visível, tudo na superfície. Sim, é ficção, eu sei. Mas de ficção desse teor o inferno está cheio.

Steve Toltz
Uma fração do todo é de ruborizar o livro de Murakami, aquele sobre corrida. Steve Toltz mostra que não brinca em serviço, está bem preparado fisicamente. Recomenda-se o mesmo treinamento aos leitores pois estarão a cada página frente a um novo acontecimento. Tal aspecto aliado a características dos personagens, sobretudo Terry, faz de Uma fração do todo um tardio representante da novela picaresca. Imprevisibilidade é outra característica da obra de Toltz, reviravoltas e mortes que mudam o rumo da história. Sim, o leitor jamais sentirá o tédio tentando lhe seduzir, ao mesmo tempo se perguntará: mas pra que tudo isso?

Optei pela morte, pelo medo da morte. Mas precisava tanto para tão pouco?

Não interprete, freudiano leitor, por favor não interprete.Isso não significa que este aprendiz ame livros sonolentos onde pouco acontece, como Becket e o tédio mor de Clarice Lispector.Nada disso. Toltz escreveu um livro para os irmãos Cohen, fique atento cinéfilo leitor. O trágico e o engraçado referido anteriormente, lembra? Lá no começo.

Irmãos Cohen, irmãos Dean. Martin e Terry Dean. Opostos, extremamente opostos.Martin, filósofo pessimista, Terry, líder da “cooperativa democrática do crime. Martin, o taciturno, a ausência de movimento. Terry,o bandido carismático, a inquietação.

A história é narrada por Jasper Dean, filho de Martin. Jasper é o resultado das influências familiares extremamente opostas. Tudo leva a crer, no entanto, que se as influências viessem apenas de seu pai, o resultado não seria muito animador. “Ele me tirou da escola com a intenção de me educar ele próprio e, em vez de me deixar pintar com os dedos, lia para mim as cartas que Van Gogh escreveu para o irmão Theo pouco antes de cortar a própria orelha”.

Jasper Dean


Jasper é praticamente a cobaia de Martin. Cobaia de filósofo existencialista, convenhamos... O garoto sobrevive, assim como outras cobaias sobreviventes, ostentando sequelas.

Van Gogh

A orelha de Van Gogh é uma das traduções da obra de Toltz, trata-se de uma fração. Ao final da leitura restará ao leitor a possibilidade de optar por uma fração, escolhi o medo da morte. Você tem várias outras: análise engraçadinha sobre a Australia e os australianos, tratado sobre relações familiares,retorno ao ideal quixotesco,pitadas de Policarpo Quaresma, e pasme, reflexões acerca da solitária atividade intelectual. Repleto de novidades, não?

A outra tradução: o inconformismo de Martin. Submeter uma criança ao cansaço dos professores é exigir extrema submissão. Com a palavra Jasper: “...depois de oito meses no jardim de infância, decidiu me tirar de lá, porque o sistema educacional era ‘embrutecedor, emburrecedor, arcaico e materialista’. Eu não sei como alguém pode chamar pintura a dedo de arcaico e materialista”.

Depende, Jasper, depende. Mais uma: o livro traz inúmeros questionamentos, humor, interpretações de inestimável relevância, que beira a auto-ajuda.
Percebeu, exigente leitor, um livro de mil e uma utilidades. Bom proveito.


*Luíz Horácio Pinto Rodrigues








Natural de Quaraí, pequeno município gaúcho na fronteira com o Uruguai, é formado em Letras e  Mestre na mesma área. Viveu sua juventude na terra natal e em Porto Alegre, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou em Letras e passou cerca de vinte anos ali, escrevendo e colaborando com páginas literárias de várias publicações. Atualmente reside em Porto Alegre (RS). Sua principal obra é a denominada Trilogia Alada, inaugurada com Perciliana e o pássaro com alma de cão, seguida de Nenhum pássaro no céu, e encerrada agora com Pássaros grandes não cantam.

Fotos: Internet

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Brasil também teve campos de concentração


Durante a 2ª Guerra, também tivemos nossos campos de concentração - onde japoneses, italianos e principalmente alemães ficaram confinados. Conheça as histórias dessas pessoas

por Alexandre Duarte



Manhã de 2 de março de 1944. Na Estação Experimental de Produção Animal de Pindamonhangaba, uma fazenda no interior de São Paulo, ouviu-se um som que não era comum no local. Era o choro de uma criança nascendo. Mas não uma criança qualquer. O choro era de Carlos Johanes Braak, o único brasileiro nascido em um campo de concentração - e em seu próprio país. Durante a 2a Guerra Mundial, o Brasil manteve 31 campos de concentração, para onde mandava os cidadãos de países do Eixo - a coligação formada por Itália, Japão e Alemanha. Os pais de Carlos, que eram alemães, estavam entre as centenas de pessoas que viveram esse lado menos cordial da história brasileira. "Era uma fazenda. O estábulo virou um dormitório. Minha mãe ficava numa casa, separada. Foi onde passei os dois primeiros anos da minha vida", lembra Carlos.


O pai de Carlos se chamava August Braak. Sua mãe, Hildegard Lange. Eles partiram de Hamburgo, na Alemanha, em direção à Cidade do Cabo, na África do Sul. Estavam a bordo de um navio chamado Windhuk, no qual August trabalhava como comissário e tesoureiro.

O Windhuk era uma embarcação turística, mas também coletava mercadorias. Quando a 2a Guerra começou, o navio já estava no continente africano - em Lobito, Angola, recebendo um carregamento de laranjas. O navio não tinha como voltar para a Alemanha em guerra, pois estava sendo perseguido por embarcações inglesas. O capitão decidiu fugir para o Brasil. E a embarcação acabou chegando ao Porto de Santos disfarçada de navio japonês, com o nome de Santos Maru, em 7 de dezembro de 1939.
Assim que o navio chegou aqui, ficou evidente que ele não era japonês coisa nenhuma. Mas os alemães foram bem recebidos. August e Hidelgard, bem como os outros 242 tripulantes, viviam em Santos e redondezas. Alguns moravam no próprio barco, outros, em pensões. Todos recebiam salários do governo alemão, e levavam uma boa vida. Em 19 de abril de 1940, os pais de Carlos se casaram numa festa a bordo do navio.
 
Mas, em 1942, tudo mudou. O Brasil rompeu relações diplomáticas com os países do Eixo - cujos cidadãos passaram a ser considerados inimigos. "O governo brasileiro precisava fazer isso [criar os campos de concentração] para se alinhar com as estratégias dos Aliados e dos EUA", explica a pesquisadora Priscila Perazzo, autora do livro Prisioneiros da Guerra (Ed. Humanitas). Alguns estrangeiros foram mandados para presídios comuns - como os de Ilha Grande e Ilha das Flores (RJ). Mas a maioria foi para campos de concentração, organizados pelo Ministério da Justiça.


Os pais de Carlos foram parar num desses campos - a fazenda em Pindamonhangaba, onde ficaram confinados 136 alemães do navio Windhuk. Eles foram presos porque seu navio tinha chegado ao Brasil durante a guerra, coisa que o governo interpretou como uma ameaça.

Os prisioneiros não podiam manter suas tradições. Nada de ler livros em alemão, por exemplo. Mas o clima era relativamente tranquilo. Alguns prisioneiros podiam visitar o centro da cidade aos sábados, aonde iam acompanhados pelos guardas. "Era comum os presos chegarem carregando os fuzis dos guardas, que sempre voltavam bêbados", diz Carlos.
Trabalhos forçados


A outra parte da tripulação do navio foi parar no campo de Guaratinguetá - entre eles Horst Judes, também tripulante do Windhuk, que tinha 19 anos. Quando desembarcou em Santos, foi um dos que ficaram vivendo no navio, até ser preso em 1942. No campo de concentração de Guarantinguetá, o tratamento não era tão bom. "Éramos obrigados a trabalhar no campo", conta o alemão, hoje com 87 anos e dono de uma chácara no interior de São Paulo. A rotina no campo de Guarantinguetá era acordar cedo, pegar enxada e picareta e dar duro. Cada prisioneiro levava um número nas costas. "O meu era 17", conta Horst. O café da manhã tinha dois pãezinhos e uma caneca de café. No almoço e no jantar era só arroz com feijão. Às quintas e aos domingos, era dia de macarrão. Mas a comida nem sempre era suficiente, e os prisioneiros dependiam de padrinhos, geralmente alemães livres, que os ajudavam de diversas maneiras. Alemães livres? Sim. A maior parte dos imigrantes não foi presa. Iam para os campos aqueles que chegavam ao Brasil em plena guerra, ou eram suspeitos de espionagem.

Foi graças a esse apadrinhamento que Horst conseguiu sobreviver depois de ser solto, em 1945. "Saímos do campo sem dinheiro nem emprego. Foram os padrinhos que nos ajudaram. O meu era de São Paulo. Trabalhei como mordomo e até como taxista", conta. Como a maioria desses estrangeiros, ele também constituiu uma família brasileira, e diz gostar do país que adotou de maneira forçada.
Campo de Concentração Tomé-Açú (PA)


Na época, o governo brasileiro fazia de tudo para mostrar que os prisioneiros de guerra eram bem tratados - o que nem sempre era verdade. O tempo de internamento variava. Houve pessoas que ficaram 3 anos presas, mas outras conseguiam ser libertadas mais cedo. Também é difícil definir exatamente o número de presos que foram mandados para os campos de concentração brasileiros entre 1942 e 1945, pois os registros são vagos. Mas existe uma documentação que revela nomes e, em alguns campos, o número exato de prisioneiros que passaram por lá. Os registros comprovam que a maioria era de alemães, seguidos de japoneses em bem menor número, italianos e um ou outro austríaco.

Campo Oscar Schneider (SC)

Juventude Hitlerista



 Poucas pessoas foram tão afetadas com o internamento nos campos quanto Ingrid Helga Koster, cujas memórias registrou no livro Ingrid, uma História de Exílios (Ed. Sagüi). Nascida no Paraná, ela se tornou órfã de pai com apenas 1 ano de idade. Quando tinha 5 anos, sua mãe se casou novamente, com um alemão. Seu padrasto, Karl von Schültze, tinha migrado para o Brasil em 1920, para fugir da crise que castigava a Alemanha depois da 1a Guerra Mundial. Schültze chegou aqui e, junto com outros estrangeiros, começou a trabalhar em uma empresa alemã, a AEG, fazendo instalações elétricas em vários lugares do país. Ele se casou com a mãe de Ingrid no início dos anos 30, em Rio Negro, no Paraná. Pouco depois a família, já com duas outras filhas, se mudou para Joinville, em Santa Catarina, cidade dominada pela cultura alemã. Ingrid se lembra de ouvir no rádio um novo chanceler que assumira o poder na Alemanha, cujo carisma a deixava emocionada. "Eu ficava arrepiada. Ele sabia falar com o povo. Nós não imaginávamos o que estava acontecendo", conta Ingrid. O tal chanceler era Hitler.
 

Então começou a guerra, e o pai de Ingrid pressentiu que as coisas ficariam ruins. Ele proibiu, mais de uma vez, que Ingrid se unisse ao movimento Juventude Hitlerista que existia em Joinville. Na Alemanha, esse grupo foi criado para reunir e doutrinar ideologicamente os jovens de 6 a 18 anos. No Brasil, o grupo assumiu um tom mais brando - servia principalmente como ponto de encontro para os imigrantes alemães. Mas o pai de Ingrid não quis nem saber. E também queimou todos os livros em alemão que tinha em casa. Entre eles o famoso Mein Kampf (Minha Luta), de Hitler.


Até que, em 1942, a polícia bateu à porta. "Eles chegaram procurando pelo meu pai, o levaram e ficamos dias sem notícias. Até que chegou um comunicado dizendo que ele estava preso aqui em Joinville", lembra ela, que depois de algum tempo passou a levar marmitas para seu pai no Hospital Oscar Schneider, adaptado como campo de concentração à época. O governo brasileiro acreditava que Karl fosse um espião nazista. Por isso, o regime de confinamento dele era rígido. Nos dois meses em que ficou em Joinville, nenhum familiar pode visitá-lo. A marmita era entregue aos guardas. Até que certo dia, quando Ingrid foi levar a comida, lhe avisaram que seu pai não estava mais lá: tinha sido transferido para o Presídio da Ilha das Flores, no Rio de Janeiro. "Nosso dinheiro acabou e tivemos que voltar para o Paraná, viver do jeito que dava", diz Ingrid. "Nossa casa era apedrejada, pichavam a suástica nos muros. Nós éramos o inimigo."

Daí em diante, ela só pôde visitar o padrasto uma vez por ano - no Natal. Quando a guerra acabou, Karl foi libertado por falta de provas. Mas seu chefe na AEG, Albrecht Gustav Engels, acabou condenado a 8 anos de prisão por fazer espionagem nazista. "Meu pai nunca falou sobre os tempos em que ficou preso. Mas acredito que tenha sofrido muito, inclusive tortura, porque antes era uma pessoa alegre e depois se tornou calado, triste", conta Ingrid. Ela chegou a perguntar antes de o padrasto morrer, em 1966, se ele realmente espionara. Karl deu uma resposta vaga, e disse apenas que não foi condenado. Então ele era mesmo um espião nazista? "Até hoje não tenho certeza", admite Ingrid.

Mesmo tendo passado por sofrimentos e humilhações, os prisioneiros alemães não quiseram deixar o Brasil depois da guerra. Como o padrasto de Ingrid. "Quando eu perguntava se ele não gostaria de voltar, ele dizia que, apesar de tudo, agora era brasileiro."

Os principais campos de detenção 

 
1. Tomé-Açú (PA)

A 200 km de Belém. Recebeu alemães e japoneses.

2. Chã de Estêvão (PE)

Abrigou empregados alemães da Cia Paulista de Tecidos (hoje conhecida como Casas Pernambucanas).
3. Ilha das Flores (RJ)


Nessa cadeia, prisioneiros de guerra foram misturados com detentos comuns - uma violação das leis internacionais.


4. Pouso Alegre (MG)

O campo de Pouso Alegre reunia presos militares: os 62 marinheiros do navio Anneleise Essberger.

5. Guaratinguetá e Pindamonhangaba (SP)

Fazendas que pertenciam ao governo e foram adaptadas para receber alemães.

6. Oscar Schneider (SC) Hospital transformado em colônia penal.

Fonte: História Viva


Imagens: Internet

domingo, 22 de maio de 2011

Casanova, o cara que catava todas


Irresistível para as mulheres, insuperável pelos homens, ele entrou para a história como protagonista de fantásticas aventuras amorosas. Porém, até hoje persistem as dúvidas sobre se tudo não passou de imaginação, exagero ou mera literatura

por Clézio Veloso



Se para representar a Idade Média proliferaram os contos de cavalaria, que inundaram nossa imaginação com jovens em armaduras brilhantes lutando pela honra de suas donzelas, quando pensamos no século 18 vêm-nos à mente reis coroados e nobres envolvidos apenas com o diz-que-diz das cortes européias, amores proibidos e duelos entre cavalheiros. Se esse século virasse um filme (na verdade, já rendeu vários), o ator principal bem poderia ser Giacomo Giovanni Casanova. Ninguém soube viver tão bem como esse aventureiro nascido em Veneza, que se tornou mundialmente conhecido como o maior conquistador de todos os tempos. Sua fama surgiu com a publicação de um livro chamado Memórias, cuja autoria é atribuída a Casanova.

A obra, considerada um dos mais importantes retratos europeus daquele período, veio à luz cerca de 30 anos depois de sua morte e narra as proezas de um homem que nunca trabalhou ou derramou uma gota de suor e ainda assim amealhou fortunas e adquiriu conhecimentos. Mas foi ao lado de damas da corte, princesas e rameiras com as quais se deitou que ele construiu sua fama de conquistador. Mesmo desprovido de elementos particulares de sedução, não teria havido mulher que resistisse aos seus encantos.

Uma história perfeita demais para ser verdade. E é provável que ela não seja real mesmo. Praticamente tudo que sabemos sobre a vida de Casanova é narrado nas Memórias. Ali, ele surge como um gênio, poliglota, intelectual, aventureiro, espião, milionário e, é claro, conquistador. Todos os ingredientes necessários para fazer de qualquer livro um best seller – e de Casanova um personagem eterno. O problema é que nem mesmo a autoria da obra é completamente consensual. E, sobre seu conteúdo polêmico, ainda se discute que parte Casanova realmente viveu e o que ele (ou foram seus editores?) inventou.

De fato, Giacomo Giovanni Casanova surgiu para o mundo com a publicação póstuma de suas Memórias. Até então apenas os moradores da pequena cidade de Dux, na Boêmia, tinham ouvido falar dele. Ali, onde passou os últimos anos de sua vida como bibliotecário do conde Joseph Charles de Waldstein, ele é descrito em correspondências da época como um homem rabugento e com o costume de contar histórias que ninguém levava em consideração. “Um veneziano de fértil imaginação, devotado às suas narrativas e a constantes intrigas. Neste porto de tranqüilidade, ele estava sempre a procurar querelas”, escreveu o príncipe de Ligne, que era sobrinho do conde.

Os cidadãos de Dux quiseram até expulsá-lo da vizinhança, porque dizia obscenidades às meninas que encontrava. Brigou com os padres da igreja local e intrigou-os com o conde. Recusava-se a pagar o que comprava, reclamava dos criados, da comida e da falta de atenção. Seria esse velho rabugento e encrenqueiro, que vivia enfurnado entre livros empoeirados, o maior amante de todos os tempos?

Menino prodígio

O que se sabe do verdadeiro Casanova é muito pouco. Nascido em Veneza (que então era um reino independente, mas hoje faz parte da Itália), em 2 de abril de 1725, ele era filho de um casal de atores, Gaetano Giuseppe Giacomo e Zanetta Farussi. Na época, os artistas iam aonde os nobres e reis estavam. Assim, os pais de Casanova viviam viajando de cidade em cidade, se apresentando às cortes em Lyon, Viena e Paris. Mas sempre voltavam para casa. “Em Veneza, o jovem Giacomo deve ter conhecido artistas de rua, andarilhos, jogadores e malandros, que viviam de pequenos golpes”, escreveu James Rives Childs, autor de Casanova – Uma Nova Perspectiva, uma das mais completas biografias sobre o conquistador. “Em Memórias, Casanova descreve em detalhes situações com as quais deve ter convivido na intimidade”, afirma Childs.



No final do século 18, Veneza era uma cidade cosmopolita. Seu movimentado porto recebia viajantes de toda a Europa, árabes do norte da África e mercadores turcos. Vendia-se e comprava-se de tudo. Enriquecia-se rápido, faziam-se amigos, cultivavam-se rivais. “Havia um clima de festa quase constante. Tanto nos grandes bailes promovidos pelos nobres quanto nos carnavais de rua, que arrastavam multidões mascaradas”, diz Childs.

A partir daí, entramos num período de sua vida que somente as Memórias relatam. Segundo o próprio Casanova, ele teria aprendido a ler e a escrever aos 8 anos de idade. Em 1734, após a morte do pai, ele foi colocado num internato em Pádua. Lá teria estudado sob a orientação de padres e obtido, aos 17 anos, o grau de doutor eclesiástico, na Universidade de Pádua. Nessa época, ele teria adquirido os primeiros conhecimentos de química, matemática, esgrima, filosofia e equitação. Também teria aprendido o latim, o grego, o francês, o hebreu, um pouco de inglês e também do espanhol.

Aos 20 anos, ele já vivia solto pelo mundo. No campo profissional foi um privilegiado, exercendo tantas atividades quantos eram os seus talentos. Pequeno industrial, violinista, jogador de cartas, diplomata, espião, empresário e tradutor. Também teria sido o fundador da loteria na França. De nada disso, no entanto, temos provas irrefutáveis. Sabe-se apenas que ele realmente falava outros idiomas. Há textos seus em latim – o que não chegava a ser um prodígio naqueles dias – e grego (um grego sofrível, é verdade, mas vá lá).

Mas, apesar da variedade de ofícios, nunca chegou a desenvolver nenhuma carreira específica. Pois desde muito jovem ele teria descoberto sua verdadeira vocação. Viver dos favores dos amigos e, sobretudo, das amigas, foi durante toda a sua vida a principal fonte de recursos. Moreno, alto, esbanjador e inteligente, Giácomo Casanova tinha uma presença marcante entre a nobreza européia. “Frederico, o Grande, teria-o tomado por um homem de rara beleza”, escreveu o austríaco Stefan Zweig em Três Poetas de sua Vida - Casanova, Sthendal, Tolstoi. A boa impressão que ele causou no poderoso rei da Prússia era ainda maior entre as mulheres. Seu primeiro caso amoroso narrado em Memórias foi no tempo do colégio, em Pádua. Ele teria feito sexo com Bettina, irmã de um amigo. Casanova tinha 9 anos de idade e ela passava dos 30. E ela lhe teria ensinado tudo sobre como agradar as mulheres.

Seus casos são muitos e se multiplicam nas diferentes biografias. Tanto que é difícil contar. Na verdade, há gente especializada em fazê-lo. O historiador alemão Friedrich Wilhelm Barthold foi o primeiro a tentar e publicou, em 1846, a obra Personagens Históricos nas Memórias de Casanova. Segundo ele, Casanova possui um currículo insuperável: ele transou com 5.575 mulheres!!!


Mulher, mulher

As táticas de conquista utilizadas por Casanova variavam conforme o alvo (cada cor de cabelo, por exemplo, exigia uma estratégia distinta), mas o galanteio era a primeira de suas abordagens. O truque era dar a elas a impressão de que ele correspondia ao que desejavam. Tanto mais perfeito quisessem um homem, tanto mais ele seria. Se preferissem a rudeza dos camponeses, num matuto ele se transformava. Além disso, ele trabalhava duro para agradar a todas.“Perito em preliminares, ele era capaz de passar um dia inteiro entre carícias e pequenos jogos sexuais. Ninguém melhor que ele sabia tratar uma mulher”, escreveu Barthold.



A reputação de Casanova impressiona ainda mais se levarmos em consideração a forma como as mulheres viviam e se comportavam na Europa do século 18. Respeito e decência eram a base da educação das jovens venezianas – pelo menos as da nobreza, que as da burguesia procuravam imitar. Para se ter uma idéia, elas se dirigiam aos pais por “senhor meu pai” e “senhora minha mãe” e raramente se relacionavam diretamente com pessoas de fora do círculo familiar. Para aprender as boas maneiras eram encaminhadas aos conventos, onde ficavam sob a guarda das freiras.

As peculiaridades dos trajes femininos daqueles dias deram origem a um dos mais curiosos capítulos das Memórias. Ao lado das habilidades com a espada, a oratória e os jogos de lógica, Casanova gaba-se de competência para manusear as vestes femininas, sempre com o intuito de se livrar delas, claro. O traje íntimo de uma senhora era composto por tiras de tecido apertadas à cintura e ajustadas com hastes de metal ou de madeira, que desciam em forma de lança pelas pregas das saias. Em cima disso ainda vinha um saiote (alguns não tinham botões e eram costurados, todas as manhãs, pelas amas, antes de as nobres senhoritas saírem de seus quartos) e só então os vestidos, que eram muito amplos e sustentados por arcos de metal. Dois trabalhos, portanto, tinha Giacomo: vencer a rotineira resistência moral e as vestes femininas. Por outro lado, com as próprias vestes ele não tinha que se preocupar: os homens, incluindo ele próprio, não costumavam tirar toda a roupa na hora do sexo.

A destreza no manejo dos intrincados trajes femininos não era a única habilidade de Casanova. O desempenho com as armas foi outra de suas virtudes. Excelente atirador e esgrimista notável, seus duelos teriam ficado famosos na França e em toda a Europa. O mais conhecido deles aconteceu em 1766. O galante aventureiro já havia passado dos 40 anos. Seu adversário era ninguém menos que o conde Branicki, militar e amigo do rei Estanislau Poniativski, da Polônia.

A discussão toda, é claro, foi por causa de uma mulher. Casanova estava em Varsóvia e a convite do próprio rei foi à corte assistir a uma apresentação de balé que comemorava o dia de São Casimiro. No intervalo, ele resolveu cumprimentar uma bailarina piemontesa que tinha chamado a atenção do monarca. De passagem, parou no camarote de uma outra dançarina que havia conhecido no dia anterior. “Mas tínhamos trocado algumas palavras, quando o conde Branicki chegou”, escreveu Casanova. A moça era amante do oficial e, sabendo disso, Casanova cumprimentou-o friamente e se afastou.



Desconfiado, o conde pôs-se a provocar o veneziano acusando-o de covardia. “Não pude reprimir a vontade de levar a mão aos copos da espada. Todavia, mudando de idéia imediatamente, contentei-me em dar de ombros como sinal de desprezo, e saí do camarote.” Casanova não havia dado quatro passos no corredor, quando as palavras “veneziano poltrão”, ditas em voz alta, o alcançaram. Foi o suficiente para que desafiasse Branicki para um duelo.

Às 6 horas da manhã do dia seguinte, lá estavam os dois postados frente a frente. Inicialmente, Casanova teria optado pela espada, mas o conde declinou da escolha, alegando que com um estranho não se bateria senão a pistola. Como de praxe, prevaleceu a vontade do desafiado Branicki. Os dois homens se afastaram cerca de 15 passos. As brumas da manhã fria começavam a se dissipar quando foi dado o aviso para disparar. Branicki perdeu alguns segundos para fazer a pontaria e Casanova disparou, seguido quase que imediatamente pelo militar. Alvejado no peito, o conde Branicki cambaleou e caiu: estava morto. Casanova também foi atingido de raspão na mão esquerda. “A bala tinha sido amortecida por um botão de metal de minha véstia”, escreveu. A fortuna, mais uma vez, lhe havia sorrido.

Essa história, contada em Memórias, é sempre citada pelos biógrafos que defendem que as narrativas de Casanova, apesar de hiperbólicas, têm alguns pontos de contato com a história. Isso porque houve, de fato, um conde de Branicki morto em 1762 (ou 1763, não se sabe ao certo), num duelo em 16 de setembro. Na Polônia, o dia de São Casimiro é o dia 15 de setembro (no Brasil, ele é comemorado em 4 de março).


O descanso do guerreiro

Segundo suas Memórias, Casanova teria ganhado muito dinheiro. O bastante para comprar um título de nobreza (ambição comum entre os burgueses da época). Viajou por toda a Europa, conviveu com reis, namorou princesas, usufruiu seus favores e, no entanto, acabou pobre. Segundo Barthold, sua beleza e vigor cederam à velhice e à doença. Os amigos foram desaparecendo e as mulheres não mais o queriam. Em 1785, já velho e cansado da vida errante que tinha levado até então, Casanova aceitou o convite do conde de Waldstein, talvez seu último protetor, para cuidar da biblioteca de seu castelo em Dux. Não parece um fim muito apropriado para um aventureiro – e, para os céticos, esse seria mais um indício do exagero de seus relatos. Aos 60 anos de idade, rodeado de livros e votado a uma solidão que tanto contrastava com sua vida pregressa, pôs um ponto final em suas viagens para dedicar-se às letras.


Em Dux põe-se a escrever. Publicou alguns livros, mas passava a maior parte do tempo dedicando-se às Memórias. Em 1794 – então com 69 anos de idade – dá como concluída a autobiografia e a mostra aqui e ali, para editores alemães e suíços, mas não consegue apoio para publicá-la. Em 4 de junho de 1798, Casanova morreu.


Memórias

Porém sua morte não interrompeu sua vocação para criar polêmica, pelo contrário. Em 1820, a casa Anger & Cia., de Leipzig, propôs à editora Brockhaus, da mesma cidade, a venda de um manuscrito de autoria de um veneziano com o título História da Minha Vida. A proposta era feita em nome de Carlo Angiolini, sobrinho do autor, um tal de Giacomo Giovanni Casanova. Na época, livros no estilo de confissões, memórias e aventuras tinham boas vendas e a Brockhaus adquiriu os manuscritos.

Os originais, redigidos em francês, foram traduzidos inicialmente para o alemão por Wilhelm von Schültz, que lhe deu o título provisório de Memórias do Veneziano Casanova. Com esse nome, a primeira edição foi lançada em 1822. A versão francesa, remodelada pelo professor Jean Laforgue, da Academia de Dresde, foi publicada em 1826. O êxito foi enorme. Casanova, enfim, saía do anonimato para a imortalidade.

Mas, apesar de ter de fato escrito os originais da autobiografia, pouco mais que a idéia de uma vida venturosa imaginada por Casanova teria sido usada pelos editores na composição do que foi publicado. Para o historiador francês Joseph Pollio, autor de Bibliographie de Casanova, nenhuma dessas obras corresponde ao original de Casanova. Para se ter uma idéia, a Brockhaus comprou o manuscrito com 600 páginas, conforme o registro de compra. O documento especifica, ainda, que foram entregues, além do original, duas cópias. Ou seja, a versão vendida pelo sobrinho de Casanova tinha no máximo 200 páginas. Miraculosamente, com elas Schültz fez 12 volumes. Cada um tem, em média, 500 páginas. É por isso que ele é apontado como o verdadeiro autor da edição definitiva das memórias de Casanova.

E mais: a confrontação dos textos em alemão e francês mostra que Laforgue fez uma obra completamente diferente da de Schültz. “Alguns nomes e referências históricas citados nos escritos foram tirados de livros do século 19. Há inúmeros exemplos de lugares que simplesmente não existiram no tempo da juventude de Casanova, mas que aparecem na versão de Laforgue”, diz Pollio. No entanto, jamais foi feita uma comparação entre os textos de Schültz e os originais, pois os manuscritos de Casanova nunca foram mostrados publicamente.



No final das contas, uma passagem das Memórias de Casanova parece vir a calhar. “Penso que enganar os tolos é façanha digna do homem de espírito. Felicito-me sempre quando me lembro de os ter apanhado em minha rede”, teria escrito.

Saiba mais

Livros:

  • Memórias, Giacomo G. Casanova, 1956, Editora Delta, São Paulo, No livro Casanova narra as aventuras, as conquistas amorosas e os conhecimentos adquiridos durante a vida. Leitura indispensável para os iniciantes na arte da sedução. Mas é preciso fôlego. A obra tem 12 volumes!

  • Casanova – Uma Nova Perspectiva, James Rives Childs, 1992, Editora L&PM, Porto Alegre, Depois de mais de uma década de estudos e pesquisas, J. Rives Childs faz a revisão do mito “Casanova” e tenta desvendar a vida e a alma de Giacomo Giovanni Casanova.

10 lições de Casanova para o amor



1. Para conquistar as loiras, ofereça verduras frescas, frutos do mar, peixes na manteiga, ovos, comidas adocicadas, cremosas, suaves queijos não muito picantes. Bebem os vinhos brancos e champanhe.

2. As morenas adoram hortaliças de perfume intenso, embutidos apimentados, risotos, carne vermelha, ostras com limão, queijos fortes, doces recheados e chocolate. Gostam dos vinhos tintos, como o Bourgogne e o Bordeaux, e do champanhe.

3. As ruivas escolhem alimentos requintados e leves, mas por outro lado o temperamento as aproxima do fogo. Tomam vinhos brancos secos, os Côtes du Rhône e os rosados. E champanhe, sempre champanhe.

4. Receita para um bom desempenho sexual: um cesto de ovos, canela-da-índia, gengibre e vinho de Chipre.

5. Para aguçar o apetite sexual: 12 ostras no café da manhã e outras 12 no almoço.

6. A conquista é um jogo. Para vencer, conhecer as fragilidades do adversário é fundamental.

7. Deve-se lisonjear a vaidade feminina pelo luxo e pela prodigalidade.

8. Toda mulher busca a felicidade. Quatro quintos do meu prazer consistem em torná-las felizes.

9. Um homem que demonstra seu amor por palavras é um tolo; ele deve se declarar por meio de sua atenção.

10. Inflamar, sem consumir; conquistar, sem destruir; seduzir, mas não desmoralizar.

Fonte: Aventuras na História
Imagens: Internet 

domingo, 1 de maio de 2011

O número de páginas de um livro não diz do seu valor


*Ronaldo Correia de Brito


Juan Rulfo
César Vallejo


O romancista Juan Rulfo bem poderia ter escrito Não mora mais ninguém, poema em prosa do peruano César Vallejo, pela maneira semelhante como lida com os vivos e os mortos. Vallejo afirma: "O lugar por onde um homem passou nunca mais será ermo. Somente está solitário, de solidão humana, o lugar por onde ainda nenhum homem passou. (...) Todos de fato deixaram a casa, mas na verdade todos continuam dentro dela. Não, não é a lembrança deles, são eles mesmos que ficam".

Com a fatalidade de quem não se desvencilha da memória e do passado, Rulfo criou uma obra inquietante, silenciosa, em que as vozes de cada história narrada soam como se fossem a nossa própria voz.

Romance ou novela, como preferirem chamar, Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, influenciou gerações de escritores latino-americanos, mesmo os que nunca o leram. Algo parecido ao que aconteceu na Rússia com O Capote, conto de Nicolai Gogol. Segundo Dostoievski, toda literatura russa posterior a Gogol é filha dessa narrativa meio absurda, meio kafkiana, a história de um homem que perde o seu capote e na tentativa de encontrá-lo se extravia em meio à burocracia.


Gogol
Dostoievski


Atribui-se a Rulfo a paternidade do realismo mágico, também conferida a Alejo Carpentier. Mas é bem distinta a atmosfera onírica de Pedro Páramo daquela que consagrou Gabriel Garcia Márquez em Cem Anos de Solidão, e beirou o exotismo com Isabel Allende.


Alejo Caspentier
Gabriel G.
Marques
  

 










Isabel Allende
 Em Pedro Páramo, os mortos falam e caminham, afigurando-se mais reais e tangíveis do que os próprios vivos. Eles parecem ter a função de extraviar os sobreviventes de Comala, um lugar estranho imaginado por Rulfo, esfumaçado e poeirento, onde o tempo possui uma outra medida e as vozes e lamentos das pessoas brotam de abismos.





Para desencaminhar-se nesse infra-mundo, um filho de Pedro Páramo se desloca na companhia de um tropeiro, realizando o desejo da mãe de que ele conheça o pai que o gerou e pise a terra de Comala, de onde ela saiu para nunca mais voltar: "Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo. Minha mãe que disse. E eu prometi que viria vê-lo quando ela morresse".

Ao final da leitura, nos perguntamos se Comala existe de verdade. Se Pedro Páramo é apenas o espectro de um poder insano e absoluto, que se arruína e leva consigo as pessoas e o mundo em volta, ou se é um homem que parece nada temer, mas que se assombra com a noite e seus fantasmas. Sem resposta, repetimos as mesmas perguntas a cada nova leitura desse livro infinito e único, apesar de suas páginas tão escassas.

 

*Ronaldo Correia de Brito - Nasceu em Saboeiro no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no ano de 2007. Escreveu os livros de contos As Noites e os Dias (1997), editado pela Bagaço, Faca (2003), Livro dos Homens (2005), e a novela infanto-juvenil O Pavão Misterioso (2004), todos publicados pela Cosac Naify. Dramaturgo, é autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, Arlequim, e o romance Galiléia pela Alfaguara. Retratos Imorais- Alfaguara / Objetiva. Escreveu durante sete anos para a coluna Entremez, da revista Continente Multicultural, e atualmente assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine.

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segunda-feira, 25 de abril de 2011

A NINFA INCONSTANTE



*Luíz Horácio Pinto Rodrigues


A protagonista de A ninfa inconstante não é Estela, não é Cuba, tampouco o narrador. A memória é a grande estrela desse belo trabalho de Guilhermo Cabrera Infante. "Não me interessa eliminar e muito menos mudar meu passado. Preciso é de uma máquina do tempo para vivê-lo de novo. Essa máquina é a memória."




A memoria, infelizmente, nem sempre desperta tão somente lembranças satisfatórias, é de sua natureza conservar lamentos e frustrações. O narrador de A ninfa inconstante também se depara com essa face opaca das emoções.

“Agora sei que o momento em que a vi pela primeira vez foi um momento equivocado".

Estela não tem dezesseis anos, nem alta nem baixa, a lolita blasée de Infante tampouco tenta se fazer sedutora. Não disfarça seu desconforto frente ao discurso desse crítico de cinema que, eu não afirmaria que se apaixonou, mas que se deslumbrou. O intelectual é casado com uma mulher que, deixa claro, já não difere mais os momentos em que está em sua presença daqueles de ausência. Convém não se apressar, paciente leitor, A ninfa inconstante não é mais um daqueles romances onde o “tio” se apaixona pela ninfenta, longe disso.




O intelectual é arrogante, chato, um reservatório de citações literárias e cinematográficas; mas está longe de ser um “tio” bobão, muito longe. Estela não é ingênua e carrega um plano, prova maior de sua falta de inocência.

O narrador não elucubra planos e mais planos para conquistar Estela, sua satisfação é admirar aquela juventude bela, enquanto isso sua vida se esvai. Mas como ganhar tempo, como superar o paradoxo que se agiganta a sua frente: matar a sede de viver.

Como cenário a cidade de Havana, uma Havana ainda musical e sensual.




A ninfa inconstante, obra póstuma de Guilhermo Cabrera Infante, pode ser lida como um balanço de sua produção, uma síntese, caso você prefira assim, caro leitor. Nessa narrativa estão bem nítidas todas as todas as possibilidades do estilo desse autor: os jogos de palavras que sermpre o seduziram, as referências cinematográficas e literárias, o fascínio pela linguagem mais coloquial, a das expressões populares e o apreço por um tipo de humor extremamente peculiar.

Cabrera Infante tece sua trama a partir de um encontro de Estelita com o narrador, critico de cinema da revista Carteles.




Existirão pontos comuns? Música, cinema e literatura são coisas dele. E Estelita , traz o quê? “Era sua própria personagem, sua protagonista e ao mesmo tempo sua antagonista sem angústia existencial.”

O narrador e Estelita, o brilhantismo da narrativa de Cabrera Infante estabelece conexões entre essas personagens tão distantes e ao mesmo tempo tão próximas. O que é de uma, já foi de outra. O que ora pertence a mais velha, um dia envolverá a jovem. “Destino é quando uma força irresistível tropeça com o objeto imóvel que você é. Destino também é desatino.”

A ninfa inconstante é um livro fascinante, no entanto, vale a pena anotar esse aviso, obediente leitor: é necessário um esforço tsunamico para não sucumbir no labirinto linguistico erguido por Cabrera Infante.


Guillermo Cabrera Infante (Gibara, Cuba, 22 de abril de 1929 - Londres, 21 de fevereiro de 2005) foi um escritor cubano naturalizado britânico. Além de ser romancista, contista e ensaísta, escreveu poemas visuais e roteiros cinematográficos.

Em 1949 criou o semanal Nova Geração (em espanhol Nueva Generación) e em 1950 ingressou na Escola de Jornalismo. Dois anos depois, após a aparição de um relato na Boehmia, foi preso. Nos anos seguintes não pôde finalizar seus trabalhos com seu próprio nome, e por isso usou um pseudônimo (G. Caín).

Obras:

• Contos-relato: Assim na Paz como na Guerra (1960) / A Vista do Amanhecer no Trópico (1974).

• Ensaios: Um ofício de sigilo XX (1960) / O (1975) / Exorcismo de estilo (1976) / Arcadia todas as noites (1978) / Holy smoke (1984) / "Mea Cuba" (esp.) (1993).

• Romances: Três tristes tigres (1965) / A Havana para um infante defunto (1980).



*Luíz Horácio Pinto Rodrigues - Natural de Quaraí, pequeno município gaúcho na fronteira com o Uruguai, é formado em Letras e faz mestrado na mesma área. Viveu sua juventude na terra natal e em Porto Alegre, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou em Letras e passou cerca de vinte anos ali, escrevendo e colaborando com páginas literárias de várias publicações. Sua principal obra é a denominada Trilogia Alada, inaugurada com Perciliana e o pássaro com alma de cão, seguida de Nenhum pássaro no céu, e encerrada agora com Pássaros grandes não cantam.

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quinta-feira, 17 de março de 2011

VERDADES E MITOS DA HISTÓRIA


O domingo sempre foi dia de descanso. FALSO


De acordo com a Bíblia, Deus declarou que descansaria no sétimo dia da semana. Com o advento do cristianismo, o repouso dominical se tornou uma tradição de séculos, certo? Errado!





No século XVIII, os filósofos iluministas chegaram a desenvolver toda uma argumentação para enaltecer as vantagens do trabalho aos domingos. De acordo com o artigo que a célebre Enciclopédia dedicou ao dia, determinada comunidade se beneficia quando suas atividades econômicas não são interrompidas no “dia do Senhor”. Anos mais tarde, durante a Revolução Francesa, o tradicional calendário gregoriano foi suprimido e substituído por um novo, que instituiu a semana de dez dias e, seguindo a política de erradicação de qualquer referência religiosa, eliminou o domingo. O antigo calendário foi restabelecido somente em 1806, sob o governo de Napoleão.

Uma das primeiras tentativas de imposição do repouso dominical ocorreu na França em 1814, quando o governo dos Bourbon aprovou uma lei para a “santificação do domingo”. A decisão só valeu até a ascensão, 16 anos depois, da monarquia burguesa de Luís Felipe I, que deixou de aplicar sanções aos que desrespeitavam o descanso no “dia do Senhor”. Em 1880, essas leis foram totalmente abolidas.
Embora iniciada por Leão IX, foi o papa Gregório VII que emprestou seu nome à chamada “reforma gregoriana”. Esse movimento intensificou a crítica à incontinência dos religiosos e passou a valorizar um clero inteiramente voltado à sua tarefa, sem relações familiares que pudessem afastá-lo dos interesses espirituais ou levá-lo a usurpar bens da Igreja para benefício de seus parentes.
O efeito desse recuo se fez sentir especialmente nas regiões industrializadas, nas quais operários sofreram com a perda do benefício e passaram a se organizar para reconquistá-lo. Essa luta levou à adoção de princípios que permanecem em vigor ainda hoje na França, além de inspirarem as legislações de vários outros países. O principal deles é o direito a um repouso de 24 horas após seis dias de trabalho.
Ainda assim, a escolha do dia de descanso ficava a cargo do empregador. Os católicos defenderam o caráter familiar do domingo, apoiados por alguns deputados de esquerda. Aproveitou-se também o fato de que o descanso das mulheres e crianças ocorria geralmente no sétimo dia. Em 13 de julho de 1906 foi votada, enfim, a lei que concedeu o repouso dominical. Conforme a medida ganhava força, passando a ser verdadeiramente aplicada só depois da Primeira Guerra, o “dia do Senhor” perdeu cada vez mais seu caráter religioso.
Longe de ser uma tradição que remete a tempos imemoriais, o direito ao lazer no domingo é recente e foi adquirido à custa de muita luta. Até quando?

O casamento de padres sempre foi proibido. FALSO!

Seguindo o exemplo de Jesus Cristo e de seus discípulos, os primeiros cristãos permaneceram celibatários. A Igreja impôs a regra a seus sacerdotes desde o princípio, certo? Errado!






Jesus Cristo jamais proferiu algo contrário ao casamento de religiosos, e alguns de seus apóstolos tiveram esposas e filhos. O judaísmo, crença da qual se originou o cristianismo, não impunha o celibato aos rabinos. Logo, a Igreja Católica também passou um longo tempo considerando aceitável a ordenação de homens casados.

Uma das primeiras tentativas de imposição do celibato aos padres fracassou no Concílio de Niceia, no ano 325. A reunião só conseguiu proibir o casamento depois da ordenação. Ao que tudo indica, porém, nem mesmo essa cláusula foi respeitada rigorosamente, já que vários clérigos do período viviam com suas companheiras e resistiram à nova regra. No século IV, por exemplo, bispos como Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa eram casados, e 39 dos papas tiveram esposas e filhos, que chegaram, em alguns casos, a suceder os pais.

Essa situação começou a mudar com a ascensão de vários monges a cargos de importância na hierarquia eclesiástica. A multiplicação das decisões papais, concílios e sínodos de bispos em defesa da obrigatoriedade do celibato mostra que a força política desse grupo, praticante da renúncia aos prazeres mundanos, alterou bastante a estrutura de poder da Igreja.

A disputa entre opositores e defensores do celibato se acirrou no século X, quando o Império Carolíngio sucumbiu e a Igreja passou a enfrentar dificuldades para impor suas normas aos clérigos. O afastamento das questões espirituais, a prática da simonia (venda de bens sagrados e de benefícios eclesiásticos) e os casos de nicolaísmo (incontinência dos padres que se casam ou vivem em concubinato) se tornaram mais frequentes. Uma reforma era necessária.


Em vários países, como Alemanha, França, Inglaterra e Espanha, essas decisões foram mal recebidas pelos clérigos locais, e o concubinato dos padres persistiu. No entanto, a população aderia cada vez mais às decisões papais e, ansiosa pela renovação de um clero corrupto e permissivo, rejeitava os religiosos que continuavam a ter uma amante ou a praticar atos condenáveis.

Assim, o desejo de um enquadramento melhor dos padres e de uma definição mais restrita de sua disciplina continuou a ganhar força. Os cânones dos concílios de Latrão II (1139), Latrão III (1179) e, finalmente, Latrão IV (1215) reiteraram a proibição ao concubinato dos padres e à ordenação de homens casados. Essas determinações têm sido rigorosamente aplicadas pela Igreja Católica até os dias atuais, a despeito do que fizeram os cristãos ortodoxos: para eles, a ordenação de homens casados continua sendo, a exemplo do que ocorria nos primeiros anos do cristianismo, uma prática perfeitamente aceitável.

Marco Polo descobriu a China. FALSO!

O viajante italiano foi o primeiro ocidental a visitar o país do Grande Khan e levar aos europeus as primeiras informações sobre a vida nas regiões do maior império do Oriente, certo? Errado!



Marco Polo


Essa história começou na primeira metade do século XIII, numa época em que os mongóis ainda faziam a Europa tremer. O filho de Gêngis Khan havia tomado Moscou em 1238, se apoderado das cidades de Kiev e Zagreb, na atual Ucrânia, invadido a Polônia e ameaçado até mesmo Viena. Essa série de vitórias só foi interrompida pela morte do soberano, já que as disputas por sua sucessão enfraqueceram a dinastia e forçaram os mongóis a recuar até a Ásia central.
Afastado o perigo, o Ocidente passou a enxergar as populações do Leste como aliados em potencial nas cruzadas contra o mundo islâmico, já que alguns asiáticos seguiam o credo nestoriano, variante do cristianismo surgida no século V e considerada herética pela Igreja de Roma. A primeira tentativa de aproximação ocorreu em 1244, quando o papa Inocêncio IV confiou ao monge franciscano Giovanni da Pian del Carpine e ao frei dominicano Ascelino de Cremona a missão de levar até o Grande Khan uma mensagem de desaprovação das destruições que ele provocara, convidando-o a aderir ao “bom caminho”, ou seja, ao cristianismo. O soberano oriental, irritado, respondeu dizendo estar pronto para reconhecer o papa, mas como seu vassalo.

Dois anos depois, quando Luís IX estava na ilha de Chipre liderando a Sétima Cruzada, um enviado mongol lhe propôs uma ação militar conjunta: enquanto os cristãos atacassem o sultão do Cairo, o império do Leste investiria contra o califado de Bagdá. Luís aprovou a ideia, mas o Grande Khan faleceu antes que a delegação francesa chegasse à sua corte para firmar o acordo, fazendo tudo voltar à estaca zero.

O rei da França decidiu nomear uma nova delegação, dessa vez confiada a Guilherme de Rubruck, para difundir os ensinamentos do Evangelho na Ásia e relatar tudo aquilo que pudesse observar. O religioso deixou Constantinopla em 1253 e levou 90 dias para percorrer os 3 mil km que o levariam a Karakorum, no norte do deserto de Gobi, onde residia o khan Mongke, quarto imperador mongol.

No dia 3 de janeiro de 1254, Guilherme de Rubruck finalmente chegou à corte do neto de Gêngis Khan, que pela primeira vez acompanhou a entrada de uma delegação ocidental na cidade. Depois da calorosa recepção, o franciscano participou de uma discussão entre muçulmanos, budistas e cristãos organizada pelo líder oriental, na qual percebeu que sua missão estava fadada ao fracasso: os mongóis não seriam convertidos.

Guilherme tomou o caminho de volta em 1255 e, não podendo encontrar-se pessoalmente com Luís IX, enviou-lhe o riquíssimo relato de sua viagem. Marco Polo só faria o mesmo 40 anos depois.

Cristóvão Colombo descobriu a América. FALSO !


Ele foi o primeiro europeu a chegar ao Novo Mundo e revelou aos homens de seu tempo a existência de um continente até então desconhecido. Certo? Errado!

por Antoine Roullet

Cristóvão Colombo


Oficialmente, o título de “descobridor da América” pertence ao navegante genovês Cristóvão Colombo, mas ele não foi o primeiro estrangeiro a chegar ao chamado Novo Mundo. Além disso, o próprio Colombo nunca se deu conta de que a terra que encontrou era um continente até então desconhecido.

A arqueologia já revelou vestígios da passagem dos vikings pelo continente por volta do ano 1000. Leif Ericson, explorador que viveu na região da Islândia, chegou às margens do atual estado de Maine, no norte dos Estados Unidos, no ano 1003. Em 1010 foi a vez de outro aventureiro nórdico, Bjarn Karlsefni, aportar nos arredores de Long Island, na região de Nova York. Além disso, alguns pesquisadores defendem que um almirante chinês chamado Zeng He teria cruzado o Pacífico e desembarcado, em 1421, no que hoje é a costa leste dos Estados Unidos.

Polêmicas à parte, Cristóvão Colombo jamais se deu conta de que havia descoberto um novo continente. A leitura de suas anotações de bordo ou de suas cartas deixa claro que ele acreditou até a morte que tinha chegado à China ou ao Japão, ou seja, às “Índias”. É o que o navegador escreveu, por exemplo, em uma carta de março de 1493.

Mesmo nos momentos em que se apresenta como um “descobridor”, Colombo se refere aos arredores de um continente que o célebre Marco Polo – do qual foi leitor assíduo – já havia descrito. Em outubro de 1492, depois de seu primeiro encontro com nativos americanos, o explorador fez a seguinte anotação em seu diário de bordo: “Resolvi descer à terra firme e ir à cidade de Guisay entregar as cartas de Vossas Altezas ao Grande Khan”. Guisay é uma cidade real chinesa que Marco Polo visitara. Nesse mesmo documento, Colombo escreveu que, segundo o que os índios haviam informado, ele estava a caminho do Japão. Os nativos tinham apontado, na verdade, para Cuba.

Suas certezas foram parcialmente abaladas nas viagens seguintes, mas o navegador nunca chegou a pensar que aportara em um novo continente. Sua quarta viagem o teria levado, segundo escreveu, à província de “Mago”, “fronteiriça à de Catayo”, ambas na China.

Apesar disso, Colombo revestiu seus relatos com um tom profético. “Estou convencido de que se trata do paraíso terrestre”, disse a respeito da foz do rio Orinoco, no território das atuais Colômbia e Venezuela. Quando voltou à Europa, ele chegou a redigir um “livro de profecias”, no qual juntou citações bíblicas a textos de cosmografia e de profetas medievais numa tentativa de, aparentemente, relacionar o Novo Mundo aos reinos míticos de Társis e Ofir, citados no Antigo Testamento. A obra não chegou a ser terminada.

Somente nos últimos anos de sua vida o genovês considerou a possibilidade de ter descoberto terras realmente virgens. Mas foi necessário certo tempo para que a existência de um novo continente começasse a ser aceita pelos europeus. Américo Vespúcio foi um dos primeiros a apresentar um mapa com quatro continentes. Mais tarde, em 1507, a nova terra seria batizada em homenagem ao explorador italiano. Um ano depois da morte de Colombo, que passou a vida sem entender bem o que havia encontrado.

Fernão de Magalhães deu a volta ao mundo? FALSO!

O navegador português comandou e planejou a expedição marítima que realizou a primeira circum-navegação do globo, no século XVI. Mas ele não chegou a completar o périplo.





Fernão de Magalhães (1480-1521) foi protagonista de uma das maiores aventuras do século XVI. Em busca de uma rota para o Oriente, o navegador português planejou e comandou a expedição que deu a primeira volta ao mundo. No entanto, Magalhães não conseguiu concluir o percurso: morreu no caminho.

Isso não diminui em nada o fato de que sua viagem, nas condições da época, tenha sido uma grande conquista. Segundo relato do italiano Antonio de Pigafetta (1480 ou 1491-1534), um dos únicos sobreviventes e historiógrafo da expedição, a aventura teve mais momentos de adversidades e milagres que de marcha vitoriosa.

As cinco caravelas de Magalhães – San Antonio, Victoria, Concepción, Santiago e Trinidad (capitânia) –, com seus 240 homens, zarparam de Sevilha em 10 de agosto de 1519 e conseguiram passar por Cabo Verde, sem obstáculos, no começo de outubro.

Depois de percorrer esse trajeto, clássico e conhecido, os perigos inerentes a todas as travessias oceânicas pareciam multiplicados por dez naquele começo do século XVI. Confrontados com uma terrível tempestade no Atlântico, os marinheiros não esperavam nada além da hora de perecer.

A salvação da expedição foi creditada às aparições de "são Telmo, santa Clara e são Nicolau", diante das quais os membros da tripulação "clamaram misericórdia", conforme relatou Pigafetta. O que ocorreu, efetivamente, foi que eles avistaram os chamados "fogos de Santelmo", um fenômeno atmosférico ligado à tempestade que produz halos de luz elétrica no alto dos mastros. No mês de março de 1520, Magalhães e seus homens aportavam para uma escala na baía de San Julián, então no Brasil (hoje Argentina).

Ao longo de cinco meses de invernada, surgiram insurreições. "Os comandantes dos outros navios tramaram uma traição contra o capitão-geral para tentar matá-lo", relata Pigafetta. Magalhães mandou decapitar Gaspar de Quesada, o capitão da #Concepción#, depois abandonou Juan de Cartagena, o antigo capitão da #San Antonio#.

Além dessas rebeliões, conforme a expedição avançava perdia navios. A embarcação #Santiago# naufragou enquanto explorava a costa da Patagônia. Os navios restantes seguiram pelo Pacífico e chegaram ao arquipélago de Saint-Lazare – atual Filipinas – em 27 de março de 1521. Foi nessa época que perderam Magalhães. Em 27 de abril, durante um contra-ataque de insulares, foi atingido no rosto por uma "lança feita de cana envenenada, que o matou subitamente", como relatou Pigafetta.

A #Concepción# seria incendiada em 3 de maio e, em 18 de dezembro, seria a vez da #Trinidad# afundar. Mas a pior calamidade ainda era a fome: "Nós só comíamos velhos biscoitos transformados em poeira e cheios de vermes, fedendo a urina de rato", escreveu Pigafetta. Com a fome, vinha a doença, principalmente o escorbuto.

Ao final da expedição, havia apenas um navio, o #Victoria#, com água entrando por todos os lados. Uma parte da carga de especiarias teve de ser jogada ao mar para que a embarcação seguisse mais leve. Em maio de 1522, a nau ultrapassaria o cabo da Boa Esperança. Dezoito de seus homens conseguiriam retornar a Sevilha. Sem Magalhães.

A Inquisição tinha poderes absolutos. FALSO!

Prisões arbitrárias, condenações sem julgamento e torturas: os inquisidores eram mais cruéis e autoritários que a justiça secular, certo? Errado!


Inquisição: morte de Giordano Bruno


Que imagens nos vêm à mente quando pensamos na palavra “Inquisição”? Confissões arrancadas sob tortura e o brilho das fogueiras expurgando os pecados de hereges. Em termos práticos, o Santo Ofício foi um tribunal da Igreja Católica romana, investido do direito canônico e encarregado de tomar decisões sobre os casos de comportamento contrário aos dogmas religiosos. Essa jurisdição excepcional representava, em meio à fragilidade dos tribunais eclesiásticos regulares, a autoridade do próprio papa.

Com a renovação do direito romano, já na Idade Média, a área de atuação dos procedimentos inquisitoriais foi sendo gradualmente alterada. Em um primeiro momento, durante os séculos XII e XIII, seu objetivo foi preservar a disciplina eclesiástica; em seguida, a Igreja passou a se servir da repressão na luta contra as heresias, mas de uma maneira diferente daquela que costumamos imaginar.

Os castigos aplicados pela instituição, por exemplo, eram reproduções das punições já instituídas pelo poder temporal, que em geral se encarregava de condenar e queimar os hereges, as feiticeiras ou os sodomitas. Em uma sociedade na qual imperava a fé, é de supor que os poderes civis se apropriassem, na tentativa de combater a desordem social ou os inimigos públicos, das prerrogativas religiosas.

Os procedimentos do tribunal eclesiástico eram tão rudimentares quanto os da autoridade civil da época. Algumas vezes, eram até mais progressistas: um notário transcrevia todos os debates, e os acusados não ficavam presos durante todo o inquérito, podendo recusar determinado juiz ou apelar para Roma contra alguma decisão do tribunal. Os que confessavam seus erros recebiam uma penitência religiosa – a fustigação pública durante a missa, a responsabilidade de cuidar de um pobre, o confisco dos bens, o exílio ou a peregrinação. Caso contrário, eram excomungados.

O recurso da tortura, muito comum nos tribunais seculares, não foi uma constante na Inquisição: a instituição recorreu muito raramente a esse procedimento. Ao todo, menos de 10% dos julgamentos envolveu a agonia física dos acusados. Com a imposição de uma regra que proibia os eclesiásticos de derramar qualquer gota de sangue dos réus, várias das confissões obtidas sob tortura perderam sua validade. Ao fim e ao cabo, o tribunal religioso condenou pouco.

Ou seja: o aparelho repressor da Inquisição foi bem menos implacável do que o civil. Por que, então, mantemos essa imagem tão sombria do Santo Ofício?

A memória coletiva acabou retendo o episódio da cruzada contra os albigenses, lançada pelos grandes barões do norte da França para acabar com a heresia dos cátaros no sul do país entre 1208 e 1249. Mas foi, sobretudo, o fanatismo do inquisidor espanhol Tomás de Torquemada, no século XV, que marcou definitivamente o espírito do Ocidente europeu. Então vieram a Reforma protestante do século XVI, o antipapismo da Igreja Anglicana, a luta do iluminista Voltaire contra o obscurantismo e, finalmente, o anticlericalismo dos séculos XIX e XX: um conjunto de elementos que pintaram um quadro tenebroso e distorcido da Inquisição. E essa é a imagem que ainda repousa na mentalidade de nosso tempo.

Fonte: História Viva
Imagens: Internet