terça-feira, 27 de abril de 2010

A MULHER QUE CHORA

*Luíz Horácio





Tanto a lenda quanto a parábola costumam ser subestimadas, relegadas ao universo infantil na maioria das vezes, sem compromisso com a realidade. Operam no terreno da fantasia, do absurdo, nada além. Infelizmente vigora essa idéia. No entanto um autor chinês, Su Tong, ao reescrever uma lenda cria uma parábola que permite reflexões acerca do amor, do poder,do individualismo, da resistência...





Su Tong em A mulher que chora recria a milenar lenda de Binu. Na história original as lágrimas de uma mulher fazem desmoronar a Grande Muralha, o otimismo vence a tristeza. O mesmo não acontece em A mulher que chora , tristeza, dor, humilhação e uma pitada do absurdo de Kafka, dão o tom a narrativa de Su Tong. Binu, a protagonista da história, vive na Aldeia do Pêssego, lugar onde as mulheres são proibidas de chorar. Até hoje, os aldeões do sopé da montanha do Norte não se atrevem a derramar uma lágrima por causa da dor da morte. O marido de Binu, Qiliang , de repente desaparece, mais tarda ela descobre que fora recrutado para trabalhar na construção da Grande Muralha da China. O tal canteiro de obras não é o que se poderia chamar de lugar tranqüilo com boas condições de trabalho. A construção teria consumido número em torno dos duzentos e cinqüenta mil homens.




Flor do pêssego


Pois foi para esse lugar que levaram Qiliang, o marido de Binu. A mulher assustada com os rigores do inverno que se aproxima, resolve levar roupas apropriadas ao marido que trabalha no trecho batizado de montanha da Grande Andorinha. A montanha dista mil li , segundo fui informado isso quer dizer milhares de quilômetros, da Aldeia do Pêssego, e Binu parte carregando uma trouxa na cabeça. Se eu tiver um cavalo, irei a cavalo. Se tiver um jumento, irei montada nele. Se não tiver nenhum dos dois, irei a pé. Um animal é capaz de percorrer essa distância. Nós não somos superiores aos animais? Quem disse que eu não posso andar mil li?




Convém estar preparado, sensível leitor, pois assim que Binu parte a história se enche de honra, piedade, sentimentalismo, fé, idealismo desmedido e obsessão. São valores eternos, você pode argumentar, erudito leitor, mas todos na mesma taça torna a bebida um tanto ácida em demasia.





A seguir, um exemplo. O recrutamento para trabalhar na construção da Grande Muralha trazia implícito o passaporte para a eternidade. Fugir era impossível, um carroceiro conseguiu.

Binu encontrou o tal carroceiro e ao perceber que lhe faltavam as mãos...

O carroceiro exibiu demoradamente os cotos sem mãos, primeiro o esquerdo, depois o direito. “Por que tanto interesse nisto aqui? Está pensando em se casar comigo?” Riu, ameaçador. “Quem cortou? Adivinhe. Vou lhe dizer uma coisa, pode tentar até o fim dos tempos, mas nunca vai adivinhar. Eu mesmo fiz isso comigo para evitar que me levassem para a montanha da Grande Andorinha! Primeiro cortei a mão esquerda, mas o convocador disse que não ter a mão esquerda não fazia diferença, já que eu ainda podia carregar pedras com a direita. Então pedi ajuda a meu pai para cortar a direita.




São personagens perdidos entre a miséria, a opressão, a fome, toda sorte de desgraça, perdem a guerra da sobrevivência para eles mesmos, sufocam a liberdade em seu interior. A viagem de Binu é farta em sofrimentos, Su Tong divide em estações a narrativa, a medida que avança, narrativa e caminhada, os requintes de humilhação a que a mulher é submetida vão se sucedendo, enquanto isso o narrador deixa o leitor com suspeitas de um certo sadismo, também em crescimento.

Binu tem um papel na trama, sofrer. Sofre sozinha. Não encontra a menor solidariedade ao longo das 249 páginas de A mulher que chora.

É justamente o choro que permitirá a Binu um certo alívio de seu sofrimento. Às mulheres da Aldeia do Pêssego não é permitido chorar pelos olhos, aprenderam a chorar pelos pés, seios, cabelos, mãos. Suas lágrimas não são lágrimas quaisquer, são poderosas, capazes de curar doenças e mexer com a natureza.

Binu não pára, não descansa, decidida a levar as roupas de lã ao marido, não dá importância aos avisos acerca da estupidez de tal empreitada. É sabido que o conformismo impede mudanças, mas determinados exageros no concerne ao movimento, a atividade, ao idealismo, chegam a beirar o grotesco. Os personagens de A mulher que chora respiram os ares do absurdo e da verdade. Paradoxal? Nem tanto. Quer ver?

Os operários são recrutados sem explicações, sabem que trabalharão na construção da Muralha, não sabem ao certo onde nem as razões para tal construção. Muitos morrerão. Não resistem, não podem fazê-lo. Uma mulher resiste. Resiste chorando. Muda algo?

Minimamente sim.

Com potente lupa o leitor perceberá uma amostra da mediocridade humana, das condições sociais e políticas da China daquela época, e das atrocidades que o poder costuma perpetrar independente do cenário.

No frigir dos ovos Su Tong trabalhou no limite entre a dor e a tragédia, e no entender deste aprendiz o limite já é excesso.


Su Tong nasceu em Suzhou, China em 1963. Licenciou-se em Literatura na Universidade de Pequim. É o autor de "Rice" e da colecção "Raise the Red Lantern", que deu origem ao filme, nomeado para os Óscares, «Esposas e concubinas» de Zhang Yimou.Su Tong vive em Nanjing, China.








*Luíz Horácio - Escritor, autor dos romances Perciliana e o pássaro com alma de cão, Nenhum pássaro no céu, Luísa e a barriga da mamãe (infantil), jornalista, professor de Literatura, mestrando em Letras.








Imagens: Internet

terça-feira, 13 de abril de 2010

Desilusões de um americano / O grande jogo de Billy Phelan



* Luíz Horácio



O grande jogo de Billy Phelan e Desilusões de um americano, dois livros, dois autores, duas excelentes histórias bem diferentes, mas com algumas coisas em comum.

No centro das tramas a família. Em O grande jogo de Billy Phelan a família propriamente dita e a família mafiosa. Em Desilusões de um americano as memórias de um pai morto abrem caminho para a família, enfim, se conhecer e se reconhecer. Há outros traços em comum, veremos adiante, mas caso a escolha por um dos títulos for inevitável, caro leitor, opte por Desilusões de um americano, sem a menor possibilidade de arrependimento.

Tanto num quanto noutro estão disponíveis fartas doses de imaginação e criatividade, parece simples, mas não é; tais itens ainda são materiais indispensáveis à arquitetura de uma grande história. Deixam de lado as supostas inovações , tolices que vão dos quebra-cabeças sem sentido de Osman Lins e seu Avalovara, às frases sem pontuação de Saramago onde,nesses casos, a história torna-se aspecto secundário. Formalismos à parte, William Kennedy e Siri Hustvedt contam histórias, sabem contar, de maneira cativante e surpreendente.

Idas e vindas são marcantes nos dois romances. Agregam ficção à vida e com sutileza adentram em questões significativas da existência humana. A relação pai/filho, Billy e Francis; Edward e Martin, na história de Kennedy. Erik, Inga e Lars, pelo lado de Ustvedt. Acrescente-se o tom investigativo, o suspense, as sinuosas pistas oferecidas . Nem sempre confiáveis. O leitor se torna o grande vencedor.

O grande jogo de Billy Phelan é uma tradicional história de gângster, do submundo do jogo e das “peculiaridades” do poder.Nada fora do lugar , porém sem a costumeira previsibilidade que exige a luta do bem contra o mal. Aqui o bem, caso exista, usa disfarce.

Tradição e modernidade não se chocam no texto de William Kennedy, unem-se na tarefa de contar a história de Billy Phelan, o jogador, que vive a dizer: “Billy sempre paga suas dívidas.” E de aposta em aposta a vida de Billy transcorre sem maiores atropelos, no ritmo dos bem quistos. Até o dia em que solicitado a atuar como informante, diz não ao papel. Fecham-se as portas, Billy não tem onde beber e jogar. Resta-lhe a solidão, agora mais acentuada. Não, paciente leitor, você não encontrará cenas de amor, de encontros, O grande jogo de Billy Phelan é um livro seco, frio,sem espaço para remissões. Aqui tudo é contido, impera a tensão, o suspense silencioso.

Exemplo: Charlie Boy, o garoto da família McCall é seqüestrado. A ação não é descrita. Nenhum tiro é disparado, tampouco na libertação onde a aparição, na janela de um carro, de dois canos de uma espingarda, constitui a maior violência.

Aparentemente simples, se ficarmos apenas com a história de Billy, no entanto complexa, precisa, se atentarmos aos aspectos da política, da corrupção e da miséria que cerca a existência humana.

Outros pontos em comum: a presença de imigrantes, noruegueses em Desilusões..., irlandeses em profusão em O grande jogo...o caderno do pai de Martin em O grande jogo... O diário do pai de Erik em Desilusões... A importância dos sonhos nos dois romances. O cunhado de Erik, escritor e roteirista de cinema, o pai de Martin, autor de peças teatrais. Em ambas histórias atrizes desempenham importantes papéis na trama. Hustvedt e Kennedy descrevem o cenário, mas merece destaque a forma como Kennedy o faz, sempre durante caminhadas dos personagens. O movimento não cessa, nem mesmo naquilo que a tradição apresenta como algo estático. As doenças dos pais de Erik e Martin, as recordações, a guerra. Da guerra, a semelhança das cenas, fortes, mas sem apelar para o exagero nas descrições. A ação de O grande jogo ...ocorre nos anos da grande depressão americana, nas memórias de Lars várias referências a essa mesma época em Desilusões...Investiga-se um seqüestro em O grande jogo...procura-se descobrir a identidade da autora de uma carta, em Desilusões...Um pai deixa cair um bebê em O grande jogo...em Desilusões um pai se distrai e a filha cai pela janela do apartamento.

Memória e realidade se fundem nos dois livros, Martin tem muito de Kennedy que também foi jornalista. Hustvedt utiliza anotações de seu pai morto em 2003.

Desilusões de um americano é um romance de idéias, de cunho autobiográfico. Memórias, problemas familiares, o não dito, o não acontecido. Aqui o mal se dilui nas frustrações.

Na trama de Ustvedt o jogo também está em cena, na forma de um quebra-cabeças, ou melhor, de dois quebra-cabeças. A existência de um caderno de memórias do imigrante norueguês Lars, pai de Érika e Inga. Ali encontram-se os relatos de sua chegada aos EUA, de sua participação na segunda guerra mundial, e um mistério. Remexendo os papéis do pai, os irmãos encontram a carta de uma certa Lisa. A mulher pede que Lars silencie sobre a morte de uma pessoa, também desconhecida. Durante o périplo investigativo, Inga e Erik estabelecem diálogos, instigantes ao leitorcurioso, acerca de filosofia, neurociência e psiquiatria. Mais um atrativo de Desilusões de um americano.

Dois passados que precisam ser montados, criados, recriados talvez, o do pai do psicanalista Erik Davidsen, uma morte precisa ser esclarecida, e o do cunhado de Erik, o roteirista Max Blaustein, uma vida- um filho fora do casamento- precisa ser admitida.

Vale chamar a atenção para dois aspectos: Desilusões de um americano é narrado por uma voz masculina. Segundo ponto;personagens femininas, no mínimo estranhas, para não dizer atormentadas.

Inga traumatizada pelo terrorismo do 11 de setembro, tenta seguir em frente após a morte do marido, mas tem uma filha adolescente e seus problemas e não bastasse isso ainda é perseguida por uma jornalista interessada em vasculhar a vida do falecido.Miranda, inquilina de Erik, não consegue cortar os laços com o psicopata pai de sua filha. Mas, em se tratando de mulheres “estranhas” ainda resta uma atriz e o que seria uma drag-queen instantânea.

Mas os personagens masculinos não são nenhum exemplo de equilíbrio; Erik parece não se abalar por nada, emoções não são seu forte, Jeffrey Lane, ex-marido de Miranda, pode ser chamado de psicopata,Max teve filho fora do casamento,Burton e o amor platônico por Inga.
Embora todos esses atrativos citados, o personagem mais marcante de ambos romances é a solidão. Solidão que no cenário de incertezas desenha novas realidades.

A solidão de Martin, o jornalista, a solidão de Billy Phelan, o jogador, abrandada por sua suposta liberdade, independência, desapego.Perder ou ganhar, o importante é jogar.A solidão de Francis, pai de Billy, que abandona a família após deixar cair e morrer seu outro filho ainda bebê. O mesmo Francis que tempos passados matara um condutor de bonde com uma pedrada. Logo fugiu da cidade.Não tardou a voltar e ficar por outros quinze anos. Ao comentar os dois acontecimentos: “É” , disse Billy. “Até dar um jeito de matar outra pessoa.” A solidão de Melissa, a atriz, que, apesar da idade,pode comparar os dotes de Martin e de seu pai, o dramaturgo Edward Daugherty.

A solidão de Francis, a mesma solidão de Billy,igual a solidão de Martin, a solidão de Edward, a solidão do abandono.

A cicatriz da solidão na figura do seqüestrado Charlie Boy.

Em Desilusões de um americano, a solidão de Erik, morte do pai e fim de seu casamento. Sente-se atraído por Miranda, sua inquilina, mas a história não progride. À irmã, Inga, filósofa, escritora; além da morte do pai, a morte do marido Max Blaustein. A fama do marido oprime e isola essa mulher que parece “suportar a vida.” A solidão como testemunho histórico e social.
A ação permanente dos acontecimentos, o que se deu não se desfaz tampouco é esquecido.Como o abandono de Billy, a traição sofrida por Inga, a separação de Erik, o gesto assassino de Francis, cenas que se repetem com a capacidade de tornar cada vez maior a solidão. Como faz comigo a cena da morte de minha filha. Solidão, começo e fim.

Desilusões de um americano, além do prazer da leitura, se presta a estabelecer um debate acerca dos conceitos de auto-ficção, autor implícito, autor criador, autor pessoa. Onde começa um e termina o outro? Existem mesmo, além teoria, essas divisões e subdivisões?



*Escritor, autor dos romances Perciliana e o pássaro com alma de cão, Nenhum pássaro no céu, Luísa e a barriga da mamãe (infantil), jornalista, professor de Literatura, mestrando em Letras.
Imagens: Internet