quinta-feira, 11 de junho de 2009

Homem borgiano espreitando o lobo


Ronaldo Correia de Brito


Rasga-mortalha

A lua é cheia no céu. Os lajedos refletem a claridade branca, mas já não se avistam frestas acesas nas portas e janelas das casas. Cães uivam assombrados. A rasga-mortalha cantou sete vezes, os olhos vermelhos em fogo. Nos currais, silenciaram os chocalhos. De algum espojadouro, o vento sopra o cheiro nauseante de suor de cavalos. Em sonho, visito uma paisagem de cemitérios e desperto assombrado com o repique de sinos.



Meu corpo pálido, transparente sob a lua, em breve não se conterá nas amarras que o prendem. Os sinais dessa meia noite de quinta para sexta-feira tecerão um zodíaco de casas em cujas portas me precipitarei. Começará os tremores, o fogacho, o estranhamento do mundo e a força desconhecida que me fará sentir o Outro. Depois, o que ainda me espera? O impulso de buscar um terreno molhado pelo suor dos cavalos, que as narinas mal suportam e, ali, desconhecido de mim mesmo, rolar-me três vezes da direita para a esquerda. Em seguida, já transformado, nada mais saberei do que faço ou penso.


Licaon

Dizem que o culpado de tudo foi Licaon, meu primeiro ancestral. Ofereceu carne humana a um deus, que comia em sua mesa. Teve por castigo de carregar a horrível forma até a morte. Dele nós herdamos a penosa sina. Cumprimos um ciclo de luz e trevas: o sol nos restitui a feição humana, pálida e melancólica; a noite nos precipita na loucura do animal, voraz e sedento de vida. Entre luz e trevas não há um só tempo em que os dois seres repousem juntos, acalmados. É esse o grande castigo do deus. Se o animal dorme, o homem vela. Ou o seu contrário. Só em sonhos um aparece ao outro.




Num dia em que me deitei cansado de uma noite de intermináveis carreiras, adormeci e sonhei. Homens enfurecidos me perseguiam. Seus cães me acuavam. A luz amarela dos fachos que eles carregavam, feria meus olhos habituados à penumbra. O que eu havia feito? Seduzira uma jovem adolescente. Por vingança, eles queriam conhecer o meu verdadeiro rosto, para só em seguida me matarem. Acordei sobressaltado. O corpo doía, o sonho me inquietava. O que procuram em mim que eu próprio não enxergo? Vejo apenas o que o espelho reflete: um rosto magro, pálido, fino, de profundas olheiras e nariz afilado. O Outro, os espelhos nunca me revelaram um instante sequer. Sou capaz de sentir suas orelhas compridas, os grossos pelos do corpo, as unhas afiadas, as presas pontudas, mas nunca contemplá-lo. Sei que o homem briga com o lobo e que uma vez é vencedor e noutra, derrotado. Mesmo sabendo que sou Um por castigo, desconheço minha legítima face.



É verdade que minha mãe prevaricou com o próprio irmão. É também verdade que sou o sétimo filho homem. Mas será justo que por essa razão eu carregue a forma plural? Que no escuro ou no claro eu tenha sempre um rosto escondido? Busco a difícil resposta. Receio a dor, mas só alcançarei a paz de que necessito e me escondo se for ferido no corpo por um homem que não sente medo. Meu salvador será odiado por mim. Conheço ardis e tentarei matá-lo de alguma maneira. Ele sabe os riscos a que está sujeito. Não poderá ferir-me de longe, com uma arma de fogo. A bala é quente e cauteriza o sangue enquanto penetra na carne. Meu redentor deverá ferir-me com um punhal, que é frio e exige a proximidade física do algoz. Ele me olhará nos olhos, sentirá minha respiração, arriscando-se ao contágio do meu sangue. Sucumbir ao mesmo vício é o preço elevado para quem me espiona e persegue. Mais uma vez meu destino se contradiz: desejo o sossego de uma noite dormida sem suores, mas evito o encontro em que meu sangue será derramado para minha redenção.


Apesar do asco e da vergonha que O Outro me inspira, sou escravo do prazer que só ele experimenta.



A lua é cheia no céu. Já adormeceram as camas, as portas das casas, os currais de gado. A claridade se espalhou e a terra é um imenso algodoal. Só os cães continuam vigiando na noite fria. Um doloroso abandono me invade. Tudo começa a partir-se. O tronco quebra-se da raiz, estremecem os galhos. Estiram-se os dedos, esquentam-se as veias, a garganta incha. Mal consigo contemplar a lua e os lajedos banhados por ela. A razão vai me deixando aos poucos e em breve não pensarei em mais nada. Correrei por cidades, cemitérios, encruzilhadas, lugares desconhecidos e longínquos. À deriva, sem rumo. Desesperadamente procurando.

A noite me reserva a emboscada que já nem temo?




Ronaldo Correia de Brito nasceu em Saboeiro no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no ano de 2007. Escreveu os livros de contos As Noites e os Dias (1997), editado pela Bagaço, Faca (2003), Livro dos Homens (2005), e a novela infanto-juvenil O Pavão Misterioso (2004), todos publicados pela Cosac Naify. Dramaturgo, é autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, Arlequim, e o romance Galiléia pela Alfaguara. Escreveu durante sete anos para a coluna Entremez, da revista Continente Multicultural, e atualmente assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine.

Fonte: Terra Magazine
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