terça-feira, 12 de maio de 2009

Ana Terra: os símbolos de um telurismo

* Jazira Augusto Rodrigues


Partindo da leitura do romance Ana Terra, episódio de importância fundamental dentro da trilogia ´O Tempo e o Vento´, de Érico Veríssimo, será analisada, num primeiro momento, a estrutura interna da narrativa e sua relação com o gênero ao qual pertence, a novela; e, logo após, o papel de algumas personagens dentro da obra, a significação do Tempo e do Vento e a simbologia de alguns objetosO Tempo e o Vento é considerada a obra-prima de Érico Veríssimo.



Nela, o autor atinge o ápice de sua criatividade literária, resgatando a brava saga de uma família e do estado do Rio Grande do Sul, desde suas origens, em meados do século XVIII, até a Era Vargas, duzentos anos depois, no fim de 1945.A obra é dividida em três partes fundamentais, a saber: O Continente (1949), O Arquipélago (1951) e O Retrato (1961), desmembradas, cada uma delas, em capítulos de acordo com a personagem central. A trilogia apresenta nítida coloração épica associada à passagem do tempo e do vento, sobretudo no primeiro volume, em que se encontra a narrativa referente à Ana Terra. Aí o autor destaca um ´tipo humano de grande riqueza interior, sem embargo de seu humilde status´ (MOISÉS, 2002). N´O Continente , Érico Veríssimo transita entre o lírico e o épico; entre o intimista e o histórico. Já nos dois últimos volumes, decai o elemento épico pela sobrecarga de história, sociologia e psicologia.Novela dentro da novelaMassaud Moisés (1978) considera ´O Tempo e o Vento´ uma novela-tipo, ainda que impregnada de elementos romanescos. Devido à sua estrutura típica, é possível pôr em relevo as características principais do gênero novela: o painel cronológico, a linearidade do tom narrativo, a pluralidade dramática, a sucessividade das ações, o predomínio dos fatos sobre as causas e o seu sentido profundo, a linguagem clara, direta, exata, concisa e de instantânea comunicabilidade.Em Ana Terra, a estrutura não poderia ser diferente. Esta, enquanto inserida na trilogia, está longe de ser empobrecida pela extensão da escrita, pois os elos de coerência que estabelece com o conjunto a tornam tão relevante, que vem a ser destacada do todo, como uma narrativa à parte da grande narrativa. O ponto de vista é o da terceira pessoa, o do narrador analítico e onisciente, que vai contando os acontecimentos da história, pintando a figura das personagens e adentrando em seu universo psicológico. O autor faz, também, uso de modo reiterado do discurso indireto livre.Podemos considerar, pois, o episódio Ana Terra como uma novela. Como diz Massaud Moisés (1979), esta possui um relevo menor que o conto e o romance. É um gênero que se detêm no exame da vida, preocupa-se com o pitoresco. Temos então um mínimo de profundidade e um máximo de aventura, daí a relevância presente nas ações.Em ´O Tempo e o Vento´, há uma série de personagens que se revezam na progressão dos episódios. Trata-se geralmente de personagens planas ou bidimensionais. Ana Terra, porém, destaca-se das demais, pois impõe a força do seu caráter diante dos trágicos acontecimentos que a acometem, e luta contra as forças coercitivas, decidindo contrariar o próprio destino e viver, como ela mesma diz, ´por pura teimosia´.O espaço da narrativa é o sertão gaúcho. Primeiramente as ações acontecem na estância onde Ana vivia com sua família; num segundo momento, após o ataque dos castelhanos, esse primeiro espaço é deixado para trás pela protagonista e temos então a província de Santa Fé como novo cenário das ações.



FIQUE POR DENTRO

Tudo sobre Érico VeríssimoÉrico Veríssimo nasceu em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, em dezembro de 1905. Filho de família rica e tradicional que se arruinou repentinamente no começo do século, Érico Veríssimo teve seus estudos secundários incompletos e ocupou-se em empregos de pequena classe média: foi ajudante de comércio, funcionário de banco, e sócio de farmácia.
Atraíram-no nesse tempo leituras irônicas e melancólicas como de Wilde, Shaw, Norman Douglas e Machado de Assis. Em 1930, quando a farmácia faliu, transfere-se definitivamente para a cidade de Porto Alegre, onde resolve tentar as Letras, inicialmente como secretário da Revista do Globo. Sua estréia literária deu-se em 1932, com o livro Fantoches, mas o êxito veio com Clarissa (1933), romance que marca o perfil psicológico de uma adolescente. Esteve por várias vezes nos Estados Unidos, onde lhe surgiu a oportunidade de ministrar Literatura Brasileira em 1943, e em 1953 passa a ocupar o posto de Diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana. Sobre seus contatos com o povo norte-americano escreveu Gato Preto em Campo de Neve e A Volta do Gato Preto.

Elementos estruturais da narrativa

Entrelaçados aos acontecimentos ficcionais de Ana Terra, aparecem os fatos históricos, que se apresentam na narrativa desde as primeiras páginas. No entanto, apesar da linearidade temporal, da seqüência histórica com que os fatos se desenrolam, aparece o tempo psicológico secundariamente.(Texto I)Na linguagem de Ana Terra temos uma extrema sobriedade e simplicidade de acordo com o grau primário de desenvolvimento do clã de Maneco Terra. Daí a coerência do autor em fazer uso de períodos curtos e de diálogos breves, concisos e lacônicos. O primitivismo das personagens impede que a linguagem seja bem desenvolvida e que suas falas sejam longas e bem elaboradas. Por vezes impera o silêncio, as palavras são substituídas por gestos e olhares, numa espécie de compreensão mútua, senão vejamos: ´Não explicou nada. Achou que não era necessário. O índio recebeu a arma num silêncio compreensivo.´ (p. 26) Ou ainda em passagens tais como as em destaque: (Texto II)Do regionalismoÉrico Veríssimo usa comedidamente a linguagem regional. Não há exageros nem excessos. Os regionalismos e coloquialismos são trazidos pelas falas das personagens. Há na narrativa contribuições estrangeiras; palavras de cunho regionalista como chiripiá, guaiaca, sanga e chinoca; e coloquialismos como o uso do ´le´, do ´pra´ e do ´tu´ característico do Rio Grande do Sul, e de expressões como ´cafundós onde Judas perdera as botas´. Um aspecto interessante a ser notado em Ana Terra a respeito das personagens, é a maneira como Érico Veríssimo as constrói, o cuidado com que as relaciona com o meio.É perceptível um processo de embrutecimento físico e moral devido à falta de um contato maior com outras pessoas e com o mundo urbano, civilizado. Veja-se a exemplo o seguinte trecho: (Texto III)Feixes temáticosDentre as temáticas gerais que aparecem na obra, podemos citar a condição dos indivíduos e sua organização de trabalho no final do século XVIII; a condição da mulher, de submissão e inferioridade em relação aos homens; o preconceito racial e lingüístico para com os povos de outras etnias; o regime patriarcal e autoritário; o machismo; o valor dado ao código moral do homem do interior; e a denúncia da injustiça social que sofriam aqueles que não tinham título, posto militar ou que não vestiam batina.A intimidade dos seresAs personagens apresentam vida interior, apesar de seu humilde status e de seu primitivismo; caracterizam-se não apenas pelas descrições feitas pelo narrador ou por seus pensamentos, que o narrador permite conhecer, graças ao recurso do discurso indireto livre, bem como por suas ações, por sua tomada de posição e também por suas atitudes diante dos acontecimentos.A personagem central apresenta um tipo humano de grande riqueza psicológica. Ana Terra apresenta conflitos interiores, conflitos que se exacerbam com a chegada de Pedro Missioneiro, personagem mítico, carregado de mistério, que servirá como elemento perturbador da narrativa (´Desde criança, dizia ter visões e conversar com Nossa Senhora.´, p. 101). A protagonista encontra-se dividida entre o desejo que sentia pelo índio e os valores morais impostos pelo pai, Maneco Terra. (Texto IV)Ana Terra simboliza a força feminina. Ela é a matriarca do Rio Grande do Sul, a fundadora de um povo. Tem um embate entre a sensibilidade e a sabedoria inatas e os golpes violentos que recebe da vida.Estes são determinantes para a evolução da protagonista que, de mulher submissa, resignada, entregue à sua condição, passa a ser uma mulher corajosa e de incrível força e perseverança; uma mulher que, apesar dos acontecimentos trágicos, insiste em viver teimosamente. Pois, ´Chamava-se Ana Terra. Tinha herdado do pai o gênio de mula.´ (p. 71).Dona Henriqueta, por sua vez, é uma mulher conformada com a própria sorte. Símbolo da submissão. Incapaz de enfrentar o marido, ou mesmo de demonstrar-lhe seus desejos, sonhos e vontades: ´Às vezes, quando estava sozinha chorava, mas na frente do marido vivia de cabeça baixa e raramente abria a boca.´ (p. 9). ´E mesmo na tristeza seu rosto não perdia a expressão de resignada serenidade.´ (p. 25)Feminino x masculinoAna Terra e sua mãe Henriqueta são figuras essenciais na luta pela sobrevivência da família. Os afazeres femininos aparecerem como sendo tão sacrificantes quanto os masculinos, ou até mais. Além disso, as mulheres têm de servir aos homens e se submeter a eles. Por isso, quando Henriqueta morre, Ana não sofre, já que tem consciência da vida infeliz que a mãe levara: ´Ana não chorou. Seus olhos ficaram secos e ela estava até alegre, porque sabia que a mãe finalmente tinha deixado de ser escrava.´ (p. 56)Já Maneco Terra representa o autoritarismo. Sua figura impõe autoridade e uma mistura de medo e respeito. Ele tem a primeira e a última palavra. Todos, mulher, filha e filhos, se submetem a sua vontade.É através desse personagem que perceberemos determinados preconceitos e discriminações para com os índios e, sobretudo, para com as mulheres. Contudo, é interessante notar que é através da figura de Maneco Terra que o autor faz a reflexão sobre o problema da insipiente questão agrária e da injustiça social. Ele representa, também, o desbravador, que assegura a configuração do território brasileiro.


TRECHOS - TEXTO I


Sempre que me acontece alguma coisa, está ventando´, costumava dizer Ana Terra. Mas, entre todos os dias ventosos de sua vida, um havia que lhe ficara para sempre na memória, pois o que sucedera nele tivera a força de mudar-lhe a vida por completo. Mas em que dia da semana tinha acontecido? Em que mês? Em que ano? Bem, devia ter sido em 1777: ela se lembrava bem porque fora o ano da expulsão dos castelhanos do território do Continente (p.07).

TEXTO ll

... estava gostando de uma moça, filha dum agricultor do município, e que pensava em casar-se com ela.- Se vosmecê me dá licença... - acrescentou humildemente.Maneco Terra ficou um instante em silêncio e depois respondeu:- Está bom. Vamos ver isso depois. Quero tomar informações da moça e da família dela.E não se falou mais no assunto nos dias que se seguiram. (p.51).

TEXTO III

E, quanto mais o tempo passava, mais o marido e os filhos iam ficando como bichos naquela lida braba (...). Parecia que a terra ia se entranhando não só na pele como também na alma deles. Andavam com as mãos encardidas, cheias de talhos e calos. Maneco à noite deitava-se sem mudar a camisa, que cheirava a suor, a sangue e a carne crua.´ (p. 14).

TEXTO IV

Ana estava inquieta. No fundo ela bem sabia o que era, mas envergonhava-se de seus sentimentos. Queria pensar noutra coisa, mas não conseguia. E o pior é que sentia os bicos dos seios (só o contato com o vestido dava-lhe arrepios) e o sexo como três focos ardentes. Sabia o que aquilo significava. Desde os seus quinze anos a vida não tinha mais segredos para ela. Muitas noites, quando perdia o sono, ficava pensando em como seria sensação de ser abraçada, beijada, penetrada por um homem. Sabia que esses eram pensamentos indecentes que precisava evitar. Mas sabia também que eles ficariam dentro de sua cabeça e de seu corpo, para sempre escondidos e secretos, pois nada neste mundo a faria revelar a outra pessoa - as coisas que sentia e desejava. Pensava nas cadelas em cio e tinha nojo de si mesma. Lembrava-se das vezes em que vira touros cobrindo vacas e sentia um formigueiro de vergonha em todo o corpo.´(p.34).

Os caminhos a serem percorridos pela ficção



Podem-se identificar três diferentes fases na obra de Érico Veríssimo. A primeira delas é a dos romances urbanos, que traz problemas da classe média numa cidade grande. São desta fase os romances: Clarissa, Música ao Longe, Caminhos Cruzados, Um Lugar ao Sol e Saga. Marcando a segundo fase temos a novela épica O Tempo e o Vento, obra-prima de Érico Veríssimo. Nesta fase, o escritor volta-se para o passado histórico do Rio Grande do Sul e resgata a história de sua terra e de sua gente. São três os volumes que integram a novela: O Continente, O Retrato e O Arquipélago. Já na terceira fase temos oschamados romances universais que trazem à tona os problemas do homem e as tensões políticas do mundo de hoje. São desta fase os romances: O Senhor Embaixador, O Prisioneiro e Incidente em Antares.

A simbologia do tempo e do vento

Quanto aos elementos simbólicos que aparecem em Ana Terra, se podem destacar, primeiramente, como elementos de maior relevância, a representação do Tempo e do Vento. Érico Veríssimo demonstra bastante originalidade na forma de tratar o Tempo, não como apego ao passado, tentando recuperá-lo por reminiscências, mas como um tempo a ser esquecido. A protagonista, após a invasão dos castelhanos à estância, busca libertar-se do passado, entregando-se a um futuro incerto e sem respostas. Daí seu êxodo para as terras de Santa Fé, ´[...] e ninguém mais falou das coisas que tinham ficado para trás.´ (p.74).Outro aspecto relevante a se destacar é que, na narrativa, o tempo aparece ligado à evolução e à mudança não apenas dos acontecimentos, mas também das personagens, que adquirem consistência física e psicológica na sua dimensão. A passagem das estações do ano, por exemplo, está intrinsecamente ligada à evolução do romance de Pedro com Ana: é na primavera que eles se conhecem, no verão Ana se entrega a Pedro, no outono, fica grávida e Pedro morre; no inverno, Ana recebe a indiferença do pai e dos irmãos.Faces do ventoA partir do capítulo treze, no entanto, passado o clímax da narrativa, o tempo aparece sempre ligado a algo monótono e circular, associado à vida da protagonista. É o que nos mostra os trechos que vão aparecendo repetidas vezes: ´[...] um dia era a repetição do dia anterior´ [...] (p. 54); ´E era assim que o tempo se arrastava, o sol nascia e se sumia [...] as estações iam e vinham´ [...]Também de fundamental importância para a obra é o Vento, tão importante que abre e fecha o episódio, além de permear quase todas as páginas. Ele aparece personificado, comparado a um ´eterno viajante que passava pela estância gemendo ou assobiando, mas nunca apeava do seu cavalo [...]´ (p. 8). O vento é o elemento enunciador de presságios. Ana Terra quase podia entender o que ele diziaem seu passar. (p. 99)O vento aparece metaforizado na narrativa. Segundo Teyssier (1995): ´O que o vento exprime é o mistério, o medo, a asfixia, a morte. Mas o Vento é também a voz do Tempo, esse tempo que não pára de passar, esse tempo das longas esperas nas solidões desse fim de mundo. [...] o Vento é a expressão dessa dor de viver que a condição temporal do homem ocasiona.´ Elementos não naturais, mas também simbólicos na narrativa são a roca de Dona Henriqueta, a tesoura de podar e o punhal que Pedro Missioneiro dera a Ana antes de morrer. Zilberman (2004) fala brevemente da simbologia desses elementos na narrativa. Segundo ela, a roca é um símbolo ligado ao trabalho. Era na roca que Dona Henriqueta trabalhava e que, mesmo depois de morta, continuava a fiar nas noites, como se estivesse eternamente ligada ao trabalho sacrificante. Em uma passagem do livro temos: ´Em outras madrugadas Ana tornou a ouvir o mesmo ruído. Por fim convenceu-se de que era mesmo a alma da mãe que vinha fiar na calada da noite. Nem mesmo na morte a infeliz se livra de sua sina de trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar...´.O movimento da roca nas madrugadas aliado ao uso do pretérito imperfeito do indicativo, tempo predominante em toda a narrativa, corporifica o ar de lenda, deixa aberto o espaço à imaginação do leitor que, em conformidade com o caminho franqueado pelo ficcionista, supre com os dados subjetivos as reticências do texto.A tesoura de podar é um símbolo de ordem feminina associado, desde D. Henriqueta, às mulheres que dão à luz; à vida. Na obra, este elemento está intimamente ligado ao povoamento da cidade de Santa Fé, que tem em Ana Terra uma espécie de matriarca: ´Muitas vezes por ano Ana Terra saía apressada sob o sol ou à luz das estrelas com a tesoura debaixo do braço. E gente nascia, morria ou se casava em Santa Fé.´ (p. 96/97)O punhal, por sua vez, é um símbolo de ordem masculina, associado à morte e aos homens nas guerras.

O feminino e a estrutura patriarcal

Em Ana Terra, o narrador, em terceira pessoa, onisciente e onipresente, inicia o percurso do romance, registrando deste uma das imagens-chave, pois traz forte carga simbólica: ´Sempre que me acontece alguma coisa, está ventando´, (p.07).O simbolismo do vento implica vários aspectos: remete, por exemplo, por conta de sua agitação, a instabilidades, a inconstâncias; se a imagem do vento aparece num sonho - ou mesmo num estado de vigília -, anuncia que um evento importante está para acontecer, que uma mudança ocorrerá.Ana Terra surge, na narrativa, aos 25 anos e com a esperança de casar-se: ´Não que sentisse muita falta de homem, mas acontecia que casando poderia ao menos ter alguma esperança de sair daquele cafundó, ir morar no Rio Pardo, em Viamão ou até mesmo voltar para a Capitania de São Paulo, lugar onde ela nascera. (p.8)Ana morava em uma estância, acaçapada num ermo, distante das cidades, em quase absoluto isolamento; o pai via, com reservas, o ser humano, considerando este mais perigoso do que uma onça. Ali, naquele lugar enterrado num longe sem fim, só sofriam a ameaça dos castelhanos (dominaram o Continente por uns treze anos), que, de quando vez, atacavam em bandos ou o perigo dos ataques dos índios.Mas tudo muito raro, pois, havia épocas em que por ali não surgia uma cara nova, e Ana vivia ao redor de quatro pessoas: o pai, a mãe e os irmãos. A vida na estância é muito dura: tão-somente um trabalho árduo, dividido entre os membros da família, consoante os papéis bem definidos: os homens - a lida no campo; as mulheres, as prendas domésticas. Só à época das colheitas é que as mulheres também partiam para o campo.Ana deseja coisas miúdas: um espelho barato, por exemplo. À beira do rio, Ana, vendo-se no espelho das águas, lembrava-se de um homem que falava da sela do cavalo: o guerrilheiro Rafael Pinto Bandeira, já figura lendária, e que lutava para livrar a gente do Continente do pesado jugo dos castelhanos.Ele chegara numa manhã de ventania (sempre o vento!). A família o recebeu. Ana ficou meio desconcerta em meio a tantos homens barbudos. O guerrilheiro elogiou-a: - ´Vossa mercê tem em casa uma moça mui linda.´ (p.10) Atrapalhada, deixou cair a faca na mão. Já em partida do guerrilheiro, os irmãos de Ana manifestaram o desejo de juntar-se também às tropas, principalmente Antônio, o mais velho, pois este via o guerrilheiro como um herói, ao que o pai retrucava: - ´Patriota? Ele está mas é defendendo as estâncias que tem´ (p.11)Lavando roupa, Ana teve a sensação de que não estava sozinha. E, quando deparou um corpo de um homem estendido junto da sanga, apanhou uma pedra. Mas o homem não se movia. Ela correu em direção ao pai e aos irmãos. Muito aflita foi para casa ao encontro da mãe, enquanto eles foram fazer averiguações. A mãe de Ana, d. Henriqueta, surge aos olhos do leitor, e, através da variação do foco, pelo discurso indireto-livre, conhecemos-lhe a intimidade, o seu sentimento de exílio: casara-se com Maneco Terra, na esperança de que viveriam em São Paulo; mas o avô do marido fora bandeirante, entrara pelo continente, e Maneco crescera com a idéia de ir viver no Rio Grande, para plantar e criar gado.Aí estava, agora, a família - pareciam todos uns bichos, entranhados na terra: ´Maneco à noite deitava-se sem mudar a camisa, que cheirava a suor, a sangue e a carne crua. Naquela casa nunca entrava nenhuma alegria, nunca se ouvia uma música, e ninguém pensava em divertimento´ (p.14).Homem e natureza como um todo.

SAIBA MAIS

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. - 35ª ed. - São Paulo: Cultrix, 1997MOISÉS, Massaud. A Criação Literária: Prosa. - 3ª ed. - São Paulo: Cultrix, 1978

OLIVEIRA, Clenir Bellezi de. Centenário de Érico Veríssimo: Um escritor que universalizou o sul do país. Discutindo Literatura, São Paulo, n. 5, p. 34-35, 200.

VERÍSSIMO,Érico. Ana Terra. - 3ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

TEYSSIER,Paul. ´O Continente´ ou le livre des origines. Nova Renascença, Porto: Fund. Eng. António de Almeida, n. 57-58, primavera-verão 1995

Autora: Jazira Augusto Rodrigues
(Colaboradora**Do Curso de Letras da Uece)
Fonte: Diário do Nordeste
Fotos: Internet