domingo, 26 de abril de 2009

DON JUAN



* Luíz Horácio

Madame Bovary é um exemplo de rompimento com o romantismo e opção pela objetividade, pelo realismo; não faltam violência, sexo e fortes doses de melodrama. Anna Karenina não esconde sua paixão, seu encantamento pelo conde Vronski e desfaz seu casamento com Karenin. Diferente de Bovary que escondia suas aventuras, Anna não perdeu tempo, coragem e honestidade a impulsionavam. São dois exemplos de amor, mas não fiquemos restritos a esses, temos um outro tipo de amor em Morte em Veneza, o amor homossexual platônico de um escritor Aschenbach por um adolescente. O Marquês de Sade é o representante maior do sadismo, masoquismo e algumas bizarrices sexuais. E o que dizer da paixão do professor Humboldt, “o coroa”, por uma menina de doze anos?
São formas de amar, são disfarces do amor. E o amor é terreno propício para permitir que medre a hipocrisia e os falsos moralismos. Que cada um ame a seu jeito, de preferência com criatividade.

Pois bem, Don Juan (narrado por ele mesmo) embora o título nos leve a pensar dessa maneira, não é um livro sobre conquistas amorosas. Trata-se de uma narrativa melancólica onde se fazem notar o medo, a tristeza e a permanente ameaça de solidão. O Don Juan de Handke foi um conquistador, no momento não passa de uma vítima de si mesmo, um Don Juan insosso, melhor dizendo. Falta um tanto do sangue dos Don Juans de Lechin, de A gula do beija-flor. Não que este seja um romance dos melhores, mas percebe-se personagens com vida, ainda com emoção, aspecto inexistente em Don Juan (narrado por ele mesmo).


Don Juan é um mito sujeito a inúmeras interpretações, inclua-se nesse rol a que o apresenta como homossexual, creio que não exista país de língua espanhola que não tenha produzido um Don Juan em sua história literária. Grande número de países europeus também têm seu Don Juan. Permita este aprendiz incluir Casanova entre eles. Peter Handke criou o seu, ou melhor inventou um cozinheiro solitário para contar a história do famoso conquistador. A solidão, tema presente em grande parte da obra de Handke, agora aparece duplicada nas pessoas de Don Juan e do cozinheiro.Desconsidere o narrado por ele mesmo. A mesma solidão, personagem irretocável de Tarde de um escritor e assustadora em O medo do goleiro diante do pênalti, em Don Juan, passou da conta e tornou a história tão emocionante quanto um corredor vazio de hospital.

Os libertinos e aqueles que não acreditam no amor fazem disso um jogo, um jogo de xadrez onde cada peça conquistada significa um sopro de vida a mais. Se o sopro é nobre ou medíocre, não me pergunte, amoroso leitor. No romance epistolar de Choderlos de Laclos, Ligações perigosas, os aristocratas se dedicam ao prazer, a intriga, a trapaça. A marquesa de Marteuil escreve ao visconde de Valmont dizendo que “ sentia uma necessidade de enganar tamanha que me reconciliava com o amor, na verdade não para senti-lo, mas para fingi-lo.” Planos traçados, estratégias escolhidas, o estraga prazeres entra em cena: o amor. Está pronta a tragédia. O romance conduz o leitor a uma reflexão sobre o amor e a incapacidade de amar.



Como disse acima, o que não falta é Don Juan na literatura. Temos Don Juan Tenório, de José Zorrilla,, o Don Juan de Tirso de Molina, entre outros, e mais o Don Juan de O regresso de Casanova, de Arthur Schnitzler,(austríaco como Handke) o Don Juan envelhecido. Desses citados, Handke conseguiu manter distância apesar da riqueza de todos Dons Juans, dos contrastes entre Don Juan Tenório e O burlador de Sevilla, ficamos com esses para não alongar o debate. O de Tirso é um sedutor, ateu, imoral, não acredita no amor, no seu entender as mulheres são tão egoístas quanto ele, o de Zorrilla é um demônio transformado em anjo graças ao amor.

Do Casanova , de Schnitzler, de quem o Don Juan de Handke poderia se aproximar, e não lhe faltariam motivos; isso também não acontece pois o personagem de Schnitzler não se rende apesar de sua decadência física, se apaixona por Marcolina, jovem que não ficava devendo nada no quesito malandragem e visão de mundo. Tanto que para lograr seu intento Casanova apela a estratégia nada ortodoxa. O Don Juan de Schnitzler sofre ante ao amor não correspondido somado a consciência da proximidade de sua morte.

Mas vamos ao Don Juan de Hanke, ao quase enredo:

No que sobrou de um monastério em Port-Royal-des-Champs, transformado em albergue, vive um solitário cozinheiro que até então gastava seus dias lendo Racine e Pascal. Um belo dia decide dar um basta nesse hábito. Pois justamente nesse dia aparece no jardim do cozinheiro, Don Juan. O Don Juan que fora de Tirso de Molina, de Zorrilla, de Moliére, Ortega y Gasset, Schnitzler e que dali em diante seria também de Handke.

Ele passa sete dias em Port-Royal, precisava descansar, até mesmo Don Juan cansa de tanto andar mundo afora.

Mas como gastar esse tempo? Don Juan tem a resposta: contando ao cozinheiro, que agora tem motivo para cozinhar, suas mais recentes aventuras. Sete dias, sete país e sete mulheres diferentes.

E Don Juan viaja acompanhado de um serviçal . O que move Don Juan não é o sabor da aventura, mas , acredite viajante leitor, é o luto provocado pela morte do filho único. De luto, entenda essa psicológico leitor, vê-se livre apesar da melancolia para viver o momento e “curtir” uma mulher aqui, outra acolá e assim nessa repetição levar a vida. Não se trata de um sedutor esse Don Juan, tampouco um objeto do desejo das mulheres, ele vive a aventura como nós lemos nossos jornais, mas diferente dele por motivos outros. Responda, lacaniano leitor,o que esperar de um ser movido pelo luto?

Cabe ressaltar a presença do tempo na narrativa, o duplo tempo; o tempo das histórias narradas pelo cozinheiro e a passagem do tempo pelos jardins do albergue em Port-Royal-des-Champs, ambos fazendo o papel de algozes de Don Juan. Tamanha perseguição não esmorece o mito movido pela melancolia e ele abandona albergue e cozinheiro. Na certa alguém estará a sua espera para reinventá-lo.
Don Juan (narrado por ele mesmo) excetuando-se a maestria com que Handke escreve e o brilhantismo da tradução não para em pé. É vazio, não passa de um delicado exercício estilístico. Querem ler Handke, pois busquem os títulos citados anteriormente mais A mulher canhota, Ensaio sobre a fadiga, Numa noite escura, deixei minha casa silenciosa. Esta uma obra prima.

Choderlos de Laclos assim justificava a existência de As ligações perigosas: “Quis fazer uma obra que continuasse ecoando na Terra quando eu já a tivesse abandonado.”

E Peter Handke, almejava o quê? Não, não responda.


TRECHO

Don Juan era órfão, e não em sentido figurado. Há anos, perdera a pessoa que lhe era mais próxima, e não fora seu pai ou sua mãe, mas - ao que me parecia - seu filho, o único. Então, com a morte do filho também era possível se tornar órfão, e como. Ou talvez fosse sua mulher, a única amada, que tivesse morrido?
Ele havia partido para a Geórgia - como para todos os lugares, no mais - sem nenhuma destinação em especial. O que o movia era nada menos que seu luto e desconsolo. Carregar pelo mundo seu enlutamento e descarregá-lo no mundo. Don Juan vivia para isso, como se fosse uma força. Seu luto era mais do que ele, excedia-o. Munido dele, por assim dizer (e não só por assim dizer), ele se sabia - não imortal, isso não - invulnerável. O luto era algo que o tornava indomável, e em contrapartida (ou melhor, de parte a parte), completamente permeável e receptivo para o que quer que acontecesse, e ao mesmo tempo invisível se necessário. Seu luto lhe servia de farnel.Nutria-o em todos os sentidos. Graças a isso ele já não tinha mais grandes carências. Estas nem sequer chegavam a surgir. A única coisa a se repudiar sempre era o pensamento de que, dessa forma, no luto, o ideal da vida terrena se tornaria possível, o que vale também para todas as outras pessoas (vide “descarregar o luto no mundo”). Seu enlutamento, nada episódico, mas desde o princípio, era uma atividade.

Don Juan não mantinha relações com ninguém há anos. O que se dava durante alguma viagem, no máximo, eram contatos casuais, apagados de imediato da memória com o fim do percurso em comum.

AUTOR

PETER HANDKE

Nascido em 1942 na Áustria, renovou a literatura de língua alemã do pós-guerra já com algumas de suas primeiras obras , como Insulto ao público (teatro, 1966) e O medo do goleiro diante do pênalti (1970). O experimentalismo da fase inicial se transformou - ao longo de sua extensa produção como romancista, dramaturgo, poeta e cineasta - em uma reflexão de poeticidade ímpar sobre o processo de escritura e sobre a linguagem como mediadora da percepção.

Resenhista: Luíz Horácio. Jornalista, escritor, autor dos romances "Perciliana e o Pássaro com Alma de Cão", ed.Conex.2006 e "Nenhum Pássaro no Céu", ed. Fábrica de Leitura, 2008. Professor de Literatura, mestrando em Letras.

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