sábado, 28 de março de 2009

Dom Hélder Câmara





Durante alguns anos cruzei com Dom Hélder Câmara, no bairro do Parque Amorim, no Recife. Nunca soube de onde vinha nem para onde ia. Era sempre nos finais de tarde. Ele usava uma batina surrada, de cor clara, pois não aderira à nova moda dos padres se vestirem à paisana. Eu o cumprimentava e ele me sorria, erguendo a mão. Acho que repetia um gesto de abençoar as pessoas.

Dom Hélder não me conhecia, mas tínhamos em comum a mesma origem cearense, o destino de buscar o Recife. Eu o conhecia muito e o admirava. Vê-lo caminhando sozinho e destemido pelas ruas, me enchia de esperança e coragem. Vivíamos tempos difíceis da ditadura militar e o arcebispo de Olinda e Recife dedicava sua vida a lutar pela justiça, pelos pobres e oprimidos. Aqueles também eram novos tempos de Evangelho, de prática da Teologia da Libertação.







Quando assassinaram o Padre Henrique, Dom Hélder escreveu uma homilia que circulou e foi lida nas igrejas, um discurso poético e de ousada coragem. Nos seus programas da Rádio Olinda, além de pregar a fé na Virgem Maria, sua grande devoção, ele falava de temas concretos, desse mundo real em que vivemos.

A residência oficial dos arcebispos de Olinda e Recife é no Palácio dos Manguinhos, no bairro das Graças. Dom Hélder preferia morar numa casinha minúscula, nos fundos da Igreja das Fronteiras, no Derby. Vivia sozinho, ou melhor, na companhia de Deus e da Virgem Maria. Foi na porta dessa casa que nos encontramos certa manhã e tivemos uma conversa ligeira, que me marcou profundamente.

Meu primeiro filho havia nascido e embora eu estivesse fora da Igreja Católica desde os dezesseis anos de idade, achei que devia batizá-lo. Eu só conhecia um modo de dar nome ao filho: o mesmo modo como me deram um nome no batismo. Qual o significado dessa escolha se eu me afastara voluntariamente da Igreja e de qualquer religião? Acho que ainda carregava fantasmas infantis, terrores de que se um bebê morre pagão, vai para o limbo, um lugar escuro e insalubre, triste e sem esperanças. A psicanálise e a ciência não me tinham curado.



Bati na porta de Dom Hélder. Ele mesmo me atendeu, a fisionomia cansada, os olhos de quem passou horas lendo. Tinha um livro na mão e marcava a página com os dedos. Convidou-me para entrar, mas agradeci, disse que não desejava incomodá-lo, que a conversa seria breve. De tanto vê-lo e ouvi-lo, me parecia próximo, quase íntimo. Senti vontade de pedir a bênção, pois sempre o julguei com o direito de abençoar. Esse gosto antigo eu não perdera ainda.


- Meu primeiro filho nasceu e estou pensando em batizá-lo - falei sem qualquer preâmbulo.

Ele esfregou os olhos e me encarou.


- Pensei em fazer o batismo aqui na sua igreja - completei no mesmo tom e pressa.

Dom Hélder sorriu e perguntou se eu era católico, se praticava o evangelho e se vivia no seio da comunidade religiosa. Respondi que não. Ele me disse que então não havia motivo para batizar a criança, que só se batiza um filho quando se deseja iniciá-lo na vida cristã. Senti-me um hipócrita, um fariseu. Falei que precisava de um ritual para dar o nome à criança. Ele me respondeu que o batismo não é uma celebração social e sim um compromisso de educar o filho nos princípios cristãos. Senti-me pior que um fariseu, um demônio logrado.

Compadecido de minha ignorância e perplexidade, sugeriu-me procurar a paróquia do bairro e batizar o menino no meio de todos os outros, num ritual comunitário. Eu havia corrido atrás de uma celebração particular, um batismo separado. Em suma, um equívoco.

Desculpei-me. Ele insistiu comigo para entrar na casa. Agradeci o conselho, fiz uma reverência e fui embora. Sempre acho que deveria ter pedido a bênção antes de me despedir.

Ronaldo Correia de Brito nasceu em Saboeiro no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no ano de 2007. Escreveu os livros de contos As Noites e os Dias (1997), editado pela Bagaço, Faca (2003), Livro dos Homens (2005), e a novela infanto-juvenil O Pavão Misterioso (2004), todos publicados pela Cosac Naify.Dramaturgo, é autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João e Arlequim. Lançou recentemente, seu primeiro romance Galileia (2008) pela editora Alfaguara. Escreveu durante sete anos para a coluna Entremez, da revista Continente Multicultural, e atualmente assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine.

Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3641005-EI6788,00-Dom+Helder+Camara.html