quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

E já estamos perto do Natal

Aqueles que acompanham esse blog, sabem do meu apreço pelos escritores e compositores talentosos que tive o privilégio de conhecer nesses últimos anos. São tantos, que chego a pensar que é um presente de Deus por eu estar dedicando-me com mais afinco à literatura. Entre aqueles mais próximos de mim estão: Álvaro Marins ("Machado e Lima Da Ironia à Sátira"; "Páginas esquecidas: uma antologia diferente de contos machadianos"- lançado recentemente; "Melhores poemas de Paulo Leminsk" junto com Fred Góes), Valdemar Valente Junior ("Cultura Luso-brasileira" - apresenta as origens da nossa colonização, do século XVI até metade do século XX), André Gardel ("Teoria da Literatura: Fundamentos" (2006) e "Teoria da Literatura: tradições e Rupturas" (2007), além de vários poemas, e como cantor, vários CDs, "Vôo da cidade" é o mais recente), Ricardo Vigna lançou o CD "Clima Verde" em parceria com Geraldo Martins), Érico Braga Barbosa Lima lançou "Novíssima Gramática do velho Português" e os estimados Luíz Horácio e Ronaldo Correia de Brito, que são habitués nesse espaço, com textos de excelente qualidade. O texto abaixo, é uma reminiscência bem-humorada, das aventuras infantis do Ronaldo com Maria Luiza, que o aproximou da cultura popular e do folclore, que mais tarde passaram a influenciar todas as suas obras teatrais, cinematográficas e literárias. Bem, vamos a ele.

E já que estamos perto do Natal


Numa noite de um mês de dezembro fui levado para ver a Lapinha pela empregada de nossa casa. Maria Luiza me puxava pela mão, enquanto subíamos a Ladeira do Seminário, assim chamada porque lá no alto ficava o seminário dos padres, um edifício imenso, pintado de amarelo e cercado de pés de eucalipto.

No final da tarde, os urubus se recolhiam aos galhos mais altos das árvores. Eram tantos que formavam uma mancha preta contra o céu. Quando os padres sentavam na calçada para a leitura dos breviários, as aves faziam cocô nas páginas abertas dos livros. A anedota corria solta pela cidade do Crato, lá no sul do Ceará, e era uma nota profana e engraçada naquele mundo sombrio de procissões e missas rezadas em latim.

O dono da brincadeira de lapinha, que eu assisti deslumbrado, era o pai de Maria Luiza, um cabo de polícia moreno e gordo. Mesmo sendo criança, eu estranhava um homem armado de revólver e cassetete se ocupar de um teatrinho feminino e delicado. Apenas as meninas representavam o auto da lapinha, com suas cantigas medievais portuguesas, adaptadas pelos padres à catequese dos pobres brasileiros.



As pastoras formavam dois cordões, um vermelho e um azul, representativos de mouros e cristãos. Esmaecidas pela singeleza da brincadeira, as cores ficaram na minha lembrança como rosa e azul claro. Havia muitos personagens: sol, lua, estrela, anjo, borboleta, beija-flor, menina da cesta, ciganas, Maria, José, Reis Magos e, o mais maravilhoso de tudo, caboclinhos de aldeia. Esses indiozinhos de presépio foram certamente botados na cena da adoração por jesuítas como o Padre Anchieta, na intenção de converter ao cristianismo os primeiros habitantes do Brasil.

Os caboclinhos cantavam os versos mais surpreendentes desse auto em louvor ao Menino Deus. Numa estrofe de quatro versos eles explicavam como se deu a Encarnação, aquele mistério da Igreja Católica segundo o qual Maria concebeu sendo virgem.

Passa o sol pela vidraça
Já passou sem tocar nela
Assim foi a Virgem
Levou luz ficou donzela.
Quem terá sido o poeta anônimo a criar esses versos? Ele quis nos dizer que assim como o sol atravessa a vidraça sem parti-la, a Virgem Maria, igualmente, recebeu uma luz e concebeu sem perder a virgindade. Ah, esses gênios populares! Tudo isso acabou em pouco tempo. De cultura viva se transformou em folclore ou espetáculo para turistas.

Eu desejava brincar na lapinha, mas era brinquedo de meninas e de gente pobre, de uma condição social diferente da minha. O máximo que consegui foi que Maria Luiza me desse as asas do anjo e as da borboleta. Mesmo esse presente foi proibido por meu pai e eu tive de escondê-las num quarto dos fundos de nossa casa, penduradas nos caibros do telhado. De vez em quando eu olhava aquelas invenções aladas e sonhava meus vôos. Até que o tempo cobriu-as de poeira e fuligem e ficaram esquecidas.



A mesma Maria Luiza me levou para ver um preso enforcado no porão da penitenciária do Crato. Uma cena horrível, que ainda me assombra. Não lembro se ao subir a ladeira do Seminário eu segurava a mão direita ou a mão esquerda dessa mulher que me apresentou o mundo. Sei que o mundo está cheio de alegrias e tristezas, tanto à direita como à esquerda. E que viver é a difícil arte de escolher caminhos.

Ronaldo Correia de Brito nasceu em Saboeiro no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no ano de 2007. Escreveu os livros de contos As Noites e os Dias (1997), editado pela Bagaço, Faca (2003), Livro dos Homens (2005), e a novela infanto-juvenil O Pavão Misterioso (2004), todos publicados pela Cosac Naify. Dramaturgo, é autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, Arlequim, e o romance Galiléia pela Alfaguara. Escreveu durante sete anos para a coluna Entremez, da revista Continente Multicultural, e atualmente assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine.