quarta-feira, 12 de novembro de 2008

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CARLOS NEJAR

O MÁGICO DAS VERDADES
Conheci Carlos Nejar em 1973, na Casa dos arreios. Eu era pouco mais que um guri preocupado em jogar futebol e insistindo em enxergar as coisas que não são do costume do homem enxergar. Mal sabendo que existia uma chave para isso e se chamava poesia. Naquela época eu já lia Mário Quintana, no entanto, sentia falta de ler poesia que me fizesse tocar em algo, me aproximasse mais da realidade que eu almejava, não a que me prendia. Ainda hoje carrego na alma os versos:

Hoje cavarás teu rumor
entre as fúrias e o sol;
plantarás uma alegria
nos arrozais.
Hoje descerá o anjo da misericórdia
sobre esses que deploras
e por quem não podes chorar
que a lágrima é só tua, e única.
Arrancarás as chaves do solstício
ou as gavetas de um silêncio não revisto.
Hoje serás amado e amarás
Sem juros ou ágios.
Amanhã não
- que o amor esgota a razão.

Vim a conhecer pessoalmente Carlos Nejar quase três décadas mais tarde. Agora eu sei o que é lamentar um tempo que passou mudo. O tempo não perdoa o silêncio.
Como podem perceber, há muito que leio Carlos Nejar e até dia desses, certos acontecimentos soavam um tanto desafinados, ou melhor, incompreensíveis, dizendo melhor, inaceitáveis; quando o foco se voltava para o obra deste que é, sem dúvida, nosso maior poeta vivo. Duvidam? Então aponte outro autor capaz de reunir, quer na prosa, quer nos versos, a lírica sutil e lúdica de Mario Quintana, que outro escritor empresta vida e inconformismo à mesma natureza que Pablo Neruda reveste de monotonia e repetições? Querem mais? Pois bem. Quem mais se dispõe, e o faz com relevância, a tratar o social e as nuances da loucura como tão bem o fez Dyonélio Machado? E o mais importante, livre de ranços e de sentimentalismos infantis.
Para quem não sabe, sou daqueles que costumam se incomodar quando a incompreensão e muitas vezes o ciúme e a inveja elegem alguém que admiro como uma de suas vítimas. Estava prestes a permitir que a mágoa me conduzisse a essas veredas quando li Novalis: "Quanto mais verdadeiro, tanto mais poético."
Decidi reler Nejar. O que eu ainda não tinha, tratei de conseguir.
"Quanto mais verdadeiro, tanto mais poético."
"Quanto mais verdadeiro, tanto mais poético."
"Quanto mais verdadeiro, tanto mais poético."

A frase fez casa em minha cabeça e antes de se tornar incômoda, se mostrou esclarecedora.
Tempo, Liberdade e Imaginação. A natureza e a condição humana, apartadas dos lugares-comuns. A obra de Carlos Nejar.
Carlos Nejar, o poeta do romance, é o mágico das verdades. E por ser verdadeiro, cria um universo paralelo onde o realismo mágico não implica em alienação tampouco no maravilhoso. É um transbordamento de consciência social , erudição e religiosidade. De breve história do mundo: Não, não me curei
Ao me curar de esperança,
não me curei de Deus.
Não posso me curar nunca
de Deus, até que Ele me tome.
A eternidade só se cura
de eternidade.
E a fonte com o fogo.

Salta aos olhos a coerência que permeia sua obra, da importância estética à severidade ética, da lucidez criativa ao pleno domínio da linguagem. Conforme George Steiner: "A linguagem do poeta nos faz reconhecer algo que não sabíamos que conhecíamos."
O autor deixa nítida, ao longo de sua obra, sua relação com a terra, com suas raízes, da temática às expressões de cunho regionalista, do olhar único que empresta à paisagem pampiana ao rigor na utilização das palavras, também característico do gaúcho do campo.
Nejar é o poeta da sua terra e sua terra é o pampa e o pampa não aceita limites geográficos. O pampa é, e o pampa também está.
Sua condição de homem do pampa se faz notar através do olhar do poeta, a ausência de limites, o inconformismo humano além do horizonte. Alguns chamam isso de liberdade. Mas, infelizmente, ainda restam aqueles que se incomodam com isso.
O homem pampiano, no seu significado mais abrangente, utiliza o verso, a prosa, como ferramentas de construção, capaz inclusive de operar transformações na realidade. Não sei onde, mas já li, dito por Nejar: " Todas as coisas que eu canto e de que eu falo, são coisas que vivi, mesmo que estejam escondidas atrás de palavras, assumo. Quero assumir cada palavra até o fim porque quero estar lúcido até o fim."
A partir daí entendi o que Octavio Paz quis dizer ao afirmar que "os poetas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia." A de Nejar é inconfundível.
Ética e estética marcam a obra de Nejar, o poeta do romance, deixando ao leitor a impressão do escritor em permanente duelo consigo mesmo, eflúvios do garimpo em busca da palavra preciosa, no tamanho correto para a exatidão do espaço. O artista/criador/escritor, reflete o homem sério e sensível, rigoroso e terno, exigente e amigo.
E por falar em estética, ela nos sugere, ou exige?, comparações e por mais que eu relute, acabo me rendendo à essa regra do jogo.
Na contra-mão de alguns colegas que costumam compará-lo a Borges e João Cabral, pois então que o comparassem a Garcia Márquez, prefiro medi-lo com Virgílio e poderíamos enveredar pelo exame do significado do tempo e dos sonhos em suas obras.
Está lá, em Carta aos loucos: "A imaginação ultrapassa as teorias. E pode criar outra imaginação e mais outra, até que a palavra germine e pare o tempo."
Quando me refiro ao tempo é porque desde cedo sei do que ele é capaz, com sua honestidade, mas também com seus ardis e trapaças. Nejar, ainda hoje,me ajuda a domar o tempo. Porque no frigir dos ovos somos todos egoístas e tudo que buscamos é com a intenção de que seja pra sempre. Que o automóvel não enferruje, que o vaso nunca quebre , que as fotografias jamais se apaguem e aqueles que amamos estejam sempre à nossa disposição. Poucos admitem mas a verdade é essa. Logo cedo percebi a morte, o fim, isso num primeiro momento me abalou, me derrotou, por que continuar um jogo com o resultado estabelecido, onde todos perdem e o grande adversário invisível acumula regozijos cínicos? Minha infância foi a tentativa de evitar e depois compreender o veneno antiético do tempo. Pai, mãe, irmãos, amigos, ( "os amigos não morrem, tiram férias". C. Nejar- O Poço dos Milagres) um dia todos desapareceriam assim como já acontecera com meu gato, com meu cachorro de estimação e meus passarinhos. Minha assustada meninice me postava entre dois extremos: um de onde mal eu tinha saído e outro que jamais seria alcançado. Porém como quase toda criança, no meu caso com um pouco mais de dor, conseguia deixar de lado os pensamentos comprometidos com a realidade e junto com amigos visitava o jardim das fantasias. Cresci e optei pelo mundo da minha imaginação. Sua existência dependia de mim, se eu tinha os planos era por que a construção era viável. O objetivo maior era trapacear, enganar a morte, desviá-la daqueles que eu queria bem, que na verdade guardavam pedaços meus e quando de suas mortes, eu morreria também. Se a fantasia não me impediu de sofrer pelo menos me fez entender que algumas coisas têm o poder de iludir o tempo, de quebrar suas cadeias. E só pode ser algo que não exija espaço.
O poeta do romance, ainda no Carta aos loucos, ensina: "As civilizações se definem na agonia. E os homens precisam imaginar para estarem livres. E mais livres seriam, se usassem o dom de imaginarem-se livres. Até o desespero."
Então passei a dar mais atenção aos sonhos, feito o vagabundo cego procedente de Assombro que foi dar com os costados em Pontal do Orvalho:
"- O que se deu com você?
- Saímos porque havia muita coisa morrendo. Viemos dar aqui. É sina. Me conformei.
- A sina não é cega.
- Não e me conformei. Tinha família, filho.
- E depois?
- Perdi. A sina tem doideira e nenhuma luz.
- E as garrafas?
- É a única coisa que consigo equilibrar. O amor me desequilibrou.
- E a cegueira?
- Escuridão acostuma.Não me queixo. O que me falta...
- Caminho?
- É ter um sentido. Nosso bando não possui paragem. E nos entreajudamos. Temos sonhos.
- Sim.
- Sonhos que a todos domina, e absorvem. Enlouquecem. Quando dormimos, vagam debaixo das árvores. Depois até as árvores sonhavam. E as aves eram a continuação do sonho das árvores. Só os sonhos tinham memória, não os homens."

O Poço dos Milagres
Quanto a Gabriel Garcia Márquez, não vislumbro vantagem alguma para o colombiano, quem sabe a midiática?, pois se Gabo fundou Macondo e com ela toda uma mística, para ficarmos neste aspecto apenas, Nejar criou Assombro e Pontal do Orvalho e nelas permitiu personagens de grandiosidade tal que mais dia menos dia, merecerão demorados estudos.
No entanto, não me tomem por um ser exageradamente limitado a ponto de acreditar na pureza, e sendo Nejar homem refinado e culto, é natural que do acúmulo de leituras e conhecimentos sobressaia algumas influências. Estas porém são insignificantes e talvez advenha exatamente daí, afinal vivemos a era dos epígonos, a dificuldade de aceitação e reconhecimento da obra fundamental deste poeta maior. Fiquem atentos caros leitores, Carlos Nejar é Carlos Nejar, o poeta do romance. Que outro se apresenta com tais qualidades no nosso vasto planalto cultural?
Raríssimos poetas, artistas, professores infelizmente, guardam a noção de seres geradores de cultura. Sendo assim, não podem almejar Olimpos que os distancie do povo, de quem em última instância, representam a consciência coletiva. Em Nejar, podemos atestar essa consciência em livros como O Campeador e o Vento (1966), Canga (1971), O Poço do Calabouço ( 1974), Um País, o coração (1980). Poderia citar outros, para não dizer todos, mas prefiro fazer referência aos mais recentes: A Engenhosa Letícia do Pontal (2003) e O Poço dos Milagres(2005).
Tais títulos servem de prova à conduta deste poeta do romance: autêntica, sincera. Ciente de seu dever, não escolhe época para defender a liberdade, independente do momento político permanece em prontidão, atento, olhos e coração de seu povo. O tempo não verga o artista, lhe concede pincel e paleta. Harmonizar as cores, no entanto, não é para qualquer um. Requer conhecimento das exigências e das necessidades. É dever do verdadeiro artista, senão a criação, pelo menos o esboço desse mundo novo.
Vigilante e andarilho, como ser assim?
Conforme disse anteriormente, Nejar é um pampiano e o pampa acompanha o homem, se oferece a todos sem distinção, mas existem àqueles, como o poeta, capazes de reinventar, de aumentar, de se confundir com o pampa. A esses, costumamos chamar de guardiões do tempo.
Neste ano de 2006 Carlos Nejar completa 46 anos de poesia, metafísico e social, o poeta do romance, não me permite vislumbrar no horizonte literário outro criador tão íntimo das metáforas como o poeta gaúcho, metáforas estas que também servem de muletas para muitos daqueles que não se conformam com o brilhantismo e a relevância de sua lírica, apoiarem seu desdém, mas o que é a arte, senão metáfora? Creio que em Nejar também viceje filosofia das mais úteis, das mais práticas. Há quem duvide, mas filosofia e a poesia guardam lá seu parentesco.
Seus romances nos permitem o contato com o aforista Carlos Nejar, jamais piegas, sempre na hora certa, a exigir do leitor um momento para a reflexão que antecede o sorriso ou a lágrima de satisfação e enlevo. Um suspiro de paz. Feito o gaúcho, homem do campo, à sombra de uma figueira ou de um cinamomo, um gole de chimarrão e a mirada ao horizonte, sabedor de estar olhando para dentro de si.
Acusam-no de alienado e autor de uma obra hermética ao excesso.
Por partes: Hermético, hoje em dia, é tudo aquilo que o "critico literário", ou melhor, o jornalista que escreve sobre livros no jornal, via de regra com "incontestes conhecimentos de teoria literária e literatura comparada e vastas leituras", não consegue alcançar. Então o carimbo: hermético. O que depender deles, nossa literatura logo, logo será a mais hermética do planeta.
Alienado: Um momento para a gargalhada seguida da lágrima de nojo.
Decididamente, não leram um livro do Nejar até o fim. Como acusar de alienação um escritor que no auge da repressão escreveu os versos que seguem, denunciando a opressão e a injustiça que campeava por aqui?
O poema Canga, imperdível, o drama de Jesualdo Monte, homem do pampa, vítima das injustiças sociais, mesmo assim longe de demonstrar passividade, este Jesus do poeta, anseia por liberdade.
Até aqui, tudo bem? Perceberam algum hermetismo? Algum olor de alienação? Então sigamos.
A obra de Carlos Nejar transcende os limites do óbvio, do visível, do concreto, o poeta do romance faz uso da imaginação como poucos, talvez se originem aí as suspeitas infundadas de alienação. Mas façam-me o favor, até as estultices exigem limites.
Convido aos crédulos e aos incrédulos a um mergulho no poço, no Poço do Calabouço, e tirem suas conclusões.
A liberdade, a luta pela liberdade é uma constante na obra de Nejar, mas trabalhada com dignidade e sutileza, capacidade esta que identifico em número reduzidíssimo de autores, coincidentemente, todos gaúchos: Dyonélio Machado, Fausto Wolff e Érico Veríssimo.
O exame, nem precisa ser minucioso, da obra de Carlos Nejar permite concluir que a liberdade é íntima da solidariedade e o autor cerra fileira com os mais fracos, artista consciente de sua função, guardião dos sonhos, das esperanças e das liberdades.
Está em Árvore do Mundo o poema que segue.
Povo
I
Enchi meus cadernos
na extensão da infância.
Enchi meus cadernos
com letras de manhã,
domingos, florestas.
Enchi meus cadernos
de povo
e ao povo
enchi de mar.
II
Onde começo e acabo
é povo.
Onde o sol leva seu recado,
é povo.
Onde há pássaros,
é povo.
Onde o trator escava,
é povo.
E a plantação da noite:
a liberdade.
Para ilustrar o tópico solidariedade, permitam-me um trecho de um livro imprescindível, Carta aos loucos : " Mas o zumbir das vozes, chamou a atenção de um mendigo deitado no banco da praça, ali perto. E de mais outro, adiante, sob o cinamomo. Roupas gastas, olhos gastos - Alduno e Reberino - , condes de uma miséria nômade: com as barrigas expostas nos olhavam. Como se lhes permitíssemos viver.
Seus sapatos tinham buracos, e dedões saiam para fora. Fui falando para eles, falando. As diferenças se retraem. Se o Céu nos tolera, se o Oceano nos foge e a Noite não se entorta, não há classes na luz."

Enquanto isso, desconhecedores dos nossos grandes escritores, emprestamos nossos submissos e colonizados ouvidos a cantilena soporífera de Saramago.
Até quando?
"O tempo é uma inteligência que transluz, quando pergunta. E é ciência para o mistério de o destino ficar tempo e o tempo virar destino."
E o tempo que corre no pampa não guarda parentesco com nenhum outro tempo, quer da metrópole, quer da floresta, é um tempo exigente que obriga aos olhares nenhuma pressa e aos ouvidos a intimidade com o silêncio. Como autêntico pampiano o poeta presta reverência ao seu avô, um mensageiro do tempo, e apresenta sua terra, seus conterrâneos e suas tradições sem apelar para patéticos estereótipos ou carnavalescos arquétipos. A Espuma do Fogo traz o calor vivo fruto da união da fantasia com a audácia. Um dia, que já vai distante, minha filha referindo-se ao seu avô dizia estar com saudade do seu "pai antigo", talvez em sua inocência de começo de vida ela tenha encontrado a expressão correta e Carlos Nejar ao guardar seu avô Miguel nos escaninhos de sua infância lhe concede a imortalidade enquanto sabiamente conclui que o que forma, informa , transforma e..."velho é o tempo."
O poeta conhece como poucos os disfarces do tempo, dos ventos e as artimanhas da nostalgia, sabe que o tempo não costuma emprestar mas tem enorme prazer em cobrar e se a angústia não chega a ser uma coxilha intransponível tampouco o pampa transpira o orvalho acre do avesso da liberdade. Só mesmo a amplitude pampeana pode conceder o espaço e conceber as coxilhas da angústia, da nostalgia, do fogo, da espiritualidade e do amor.
A Espuma do Fogo é uma vasta janela onde se vislumbra a imensidão do pampa e as origens gauchescas amalgamadas a universalidade do poeta, legitimada na diversidade dos registros linguisticos em plena harmonia com a linguagem mais coloquial a vasculhar os rincões da memória deixando a certeza inconteste que cultivamos lembranças que nos farão menos solitários na hora da morte.
"No coice da estrela d'alva, ao amanhecer com as vinhas, eu fico. A morte é sozinha, por vezes, adolescente. Mas o pampa sabe sempre, com presteza o que ela sente."
Simbolismos e heroísmos na medida exata fazem de A Espuma do Fogo algo fora do comum no ambiente literário, em se tratando de poesia não resta a menor dúvida que estamos diante de uma obra incomum que permitirá aos desavisados, e infelizmente não são poucos, olhar para Carlos Nejar como se este fosse um peixe fora d'água quando na verdade este poeta imortal é água cristalina a dessedentar o tempo e os ventos. É vida.
E justamente da arbitrariedade da vida vem a tona seu sub produto mais valioso, a aventura humana comovente e cruel onde a liberdade é o prêmio único no embate de cartas marcadas e sendo assim, o que fazer nesse interregno onde a angústia , fruto da consciência, transcende o devaneio? Poderá a morte ensinar mais do que a vida? A resposta está na incessante busca.
O poeta pampiano não se acomoda tampouco se acovarda, impõe movimento e em sua sofisticada simplicidade busca a natureza, o lirismo de suas raízes, sem cair nas teias luminosas do escapismo e verseja na intenção de encontrar Deus.
Nejar guarda um misticismo sutil que ao aflorar permite ao poeta forjar palavras e expressões de uma sonoridade pouco usual atestando sua vitalidade e precisão das imagens, sinais que o individualizam como um pintor de cuja palheta saltam cores de um aço cortante manifestando seu amor a terra, aos seus familiares a sua Elza, ao tempo, ao vento....
"Deito com meu avô Miguel na terra. E quem te ama, Elza, é pampa, este vaso de oliveira e almas. Parras labaredas que a lareira abrasa, os rostos queimando, sem queimar a sarça. E deito-me , Elza, contigo no poema."
Em seu romance anterior Carlos Nejar nos encantava com Letícia, a mulher ideal, a imagem da mulher projetada em pleno céu, aquela merecedora do seu amor e dos seus enigmas.Uma nuvem livre, inquieta, aliada do tempo.
Aspecto pouco analisado na obra do pampiano Nejar é sua preocupação com o meio ambiente, Letícia subia num pé de amoreira em protesto contra a derrubada - Não podem! Esta árvore também sou eu!, repetindo o gesto de estudantes porto alegrenses na década de setenta. Da borda do Poço dos Milagres Nejar mostra o cuidado dos pescadores com o rio, os "peixes cheios de alma" e os pássaros. É importante dizer que se em A Engenhosa Letícia.... a protagonista estava bem definida desde o título, neste as personagens guardam o mesmo grau de importância. Talita não é mais nem menos que Viriato, cavalo, ora zaino, ora alazão, interlocutor e confidente da menina. O finado Dom Seráfico, prefeito à época de Letícia, embora apenas lembrado, não perde em significado para o Anjo chamado Gênero Humano. No entanto, sou capaz de apostar que a nuvem, a Letícia deste Poço dos Milagres, a personagem que ora permite a luz ora impõem a escuridão, sem dúvida nenhuma, é a literatura e o narrador parafraseando Nelson Rodrigues, teatrólogo famoso que transitou por Pontal: "- Os inteligentes estão matando o romance. E há que chamar os burros para salva-lo. - À s vezes de si mesmos." - com sua fina ironia nos obriga a refletir sobre o que não só as editoras com seus gênios por uma semana. estão fazendo para destruir a verdadeira literatura, mas também até que ponto nós leitores somos coniventes consumidores do lixo nacional e estrangeiro.
Abro um parêntese para tentar mostrar algumas razões que me levam a tratar a obra de Nejar com tamanha distinção Para tanto utilizarei um livro, por demais emblemático. O Carta aos loucos.
Amar é distinguir, separar, elevar, necessitar, estar à disposição, o resultado é a emoção. Pois bem, como evitar a emoção, mesmo no alvorecer da trama, quando o autor recebe o leitor com períodos como os que seguem ?
- O espírito em nós é como a água. Ao parar, apodrece.
E ela sorriu com as profundezas.Flutuava sob a lua. E me lembrei de um surdo ancestral que se habituara a repetir a mesma frase:
Duas coisas há que um homem desaprende: recurvar-se e calar.
E me calava. E obedecia à luz.
Mais adiante:
"Ao não me deixar falar, cheguei ao ponto de não escutá-lo. O silêncio é mais eloqüente do que a dor. E a dor, mesmo fanhosa, jamais será política. Não Tendo eu nada com a república que aplicava as aptidões de logro com o discurso tão diferente da ação.
Eu era um escrevente. Para uns, lúcido, e para outros, louco. Só liderava meus fantasmas sem governo."
Creio que o amor não seja pra sempre, pois é vivo e tudo que é vivo tem que morrer Mas o que me interessa é o mundo da fantasia e da minha imaginação o que me leva a acreditar num amor imortal. É isso. Não, eu não tenho 17 anos, tenho muito mais e não acredito em nada, nada mesmo que não seja produto da fantasia, do imaginado, do sonhado. Eu sempre sonhei com a relevância da arte, meus pais também. Tanto que permitiram os estudos da literatura e da música. O sonho naqueles dias de meninice já era sonhado, não eu não tenho 17 anos, tenho muito mais e acredito num sonho em especial, um sonho de liberdade e justiça.
Acreditar, tão somente, não basta é preciso viver a realidade com fantasia, fazer da vida, um sonho bom. Peço, no entanto, que não me obrigue a despertar na melhor parte. Viver é preencher o álbum dos acontecimentos. E só merece esse título aquilo que transforma. Um acontecimento pode ser o desabrochar de uma rosa, caso eu presenciasse, o passarinho rompendo a casca do ovo, sob o olhar deste aprendiz. No entanto isso nunca aconteceu, quando eu chego, eles já estão lá, a rosa e seu perfume, o pássaro e seu canto. Na minha vida foram raros os acontecimentos. Cedo, muito cedo, me dei conta que eu era apenas um fragmento. Daí a acreditar que o fragmento era do nada, um pó do futuro não foi preciso muita reflexão, confesso. Pai, amigos, filhos me mantinham num permanente recreio, por um tempo eles foram suficientes mas tudo tem um limite, o abismo me aguardava e eu, covarde, apenas olhava. Até que surgiu a literatura, Veríssimo, Dyonélio, Fausto, Lygia, Drummond... e hoje, sem afobação, posso amar muito mais a todos que me amam e aqueles que não são amados por ninguém. Já não me sinto um grão do nada mas um pedregulho do amor. Pela sua inestimável contribuição, Carlos Nejar, mestre e irmão, muito obrigado.
Com meu amor. Sem esgotar a razão.

Luíz Horácio
Professor de Literatura, escritor, autor dos romances Perciliana e o pássaro com alma de cão-ed.Conex e Nenhum pássaro no céu-Ed. Fábrica de Leitura.