Quanto a Gabriel Garcia Márquez, não vislumbro vantagem alguma para o colombiano, quem sabe a midiática?, pois se Gabo fundou Macondo e com ela toda uma mística, para ficarmos neste aspecto apenas, Nejar criou Assombro e Pontal do Orvalho e nelas permitiu personagens de grandiosidade tal que mais dia menos dia, merecerão demorados estudos.
No entanto, não me tomem por um ser exageradamente limitado a ponto de acreditar na pureza, e sendo Nejar homem refinado e culto, é natural que do acúmulo de leituras e conhecimentos sobressaia algumas influências. Estas porém são insignificantes e talvez advenha exatamente daí, afinal vivemos a era dos epígonos, a dificuldade de aceitação e reconhecimento da obra fundamental deste poeta maior. Fiquem atentos caros leitores, Carlos Nejar é Carlos Nejar, o poeta do romance. Que outro se apresenta com tais qualidades no nosso vasto planalto cultural?
Raríssimos poetas, artistas, professores infelizmente, guardam a noção de seres geradores de cultura. Sendo assim, não podem almejar Olimpos que os distancie do povo, de quem em última instância, representam a consciência coletiva. Em Nejar, podemos atestar essa consciência em livros como O Campeador e o Vento (1966), Canga (1971), O Poço do Calabouço ( 1974), Um País, o coração (1980). Poderia citar outros, para não dizer todos, mas prefiro fazer referência aos mais recentes: A Engenhosa Letícia do Pontal (2003) e O Poço dos Milagres(2005).
Tais títulos servem de prova à conduta deste poeta do romance: autêntica, sincera. Ciente de seu dever, não escolhe época para defender a liberdade, independente do momento político permanece em prontidão, atento, olhos e coração de seu povo. O tempo não verga o artista, lhe concede pincel e paleta. Harmonizar as cores, no entanto, não é para qualquer um. Requer conhecimento das exigências e das necessidades. É dever do verdadeiro artista, senão a criação, pelo menos o esboço desse mundo novo.
Vigilante e andarilho, como ser assim?
Conforme disse anteriormente, Nejar é um pampiano e o pampa acompanha o homem, se oferece a todos sem distinção, mas existem àqueles, como o poeta, capazes de reinventar, de aumentar, de se confundir com o pampa. A esses, costumamos chamar de guardiões do tempo.
Neste ano de 2006 Carlos Nejar completa 46 anos de poesia, metafísico e social, o poeta do romance, não me permite vislumbrar no horizonte literário outro criador tão íntimo das metáforas como o poeta gaúcho, metáforas estas que também servem de muletas para muitos daqueles que não se conformam com o brilhantismo e a relevância de sua lírica, apoiarem seu desdém, mas o que é a arte, senão metáfora? Creio que em Nejar também viceje filosofia das mais úteis, das mais práticas. Há quem duvide, mas filosofia e a poesia guardam lá seu parentesco.
Seus romances nos permitem o contato com o aforista Carlos Nejar, jamais piegas, sempre na hora certa, a exigir do leitor um momento para a reflexão que antecede o sorriso ou a lágrima de satisfação e enlevo. Um suspiro de paz. Feito o gaúcho, homem do campo, à sombra de uma figueira ou de um cinamomo, um gole de chimarrão e a mirada ao horizonte, sabedor de estar olhando para dentro de si.
Acusam-no de alienado e autor de uma obra hermética ao excesso.
Por partes: Hermético, hoje em dia, é tudo aquilo que o "critico literário", ou melhor, o jornalista que escreve sobre livros no jornal, via de regra com "incontestes conhecimentos de teoria literária e literatura comparada e vastas leituras", não consegue alcançar. Então o carimbo: hermético. O que depender deles, nossa literatura logo, logo será a mais hermética do planeta.
Alienado: Um momento para a gargalhada seguida da lágrima de nojo.
Decididamente, não leram um livro do Nejar até o fim. Como acusar de alienação um escritor que no auge da repressão escreveu os versos que seguem, denunciando a opressão e a injustiça que campeava por aqui?
O poema Canga, imperdível, o drama de Jesualdo Monte, homem do pampa, vítima das injustiças sociais, mesmo assim longe de demonstrar passividade, este Jesus do poeta, anseia por liberdade.
Até aqui, tudo bem? Perceberam algum hermetismo? Algum olor de alienação? Então sigamos.
A obra de Carlos Nejar transcende os limites do óbvio, do visível, do concreto, o poeta do romance faz uso da imaginação como poucos, talvez se originem aí as suspeitas infundadas de alienação. Mas façam-me o favor, até as estultices exigem limites.
Convido aos crédulos e aos incrédulos a um mergulho no poço, no Poço do Calabouço, e tirem suas conclusões.
A liberdade, a luta pela liberdade é uma constante na obra de Nejar, mas trabalhada com dignidade e sutileza, capacidade esta que identifico em número reduzidíssimo de autores, coincidentemente, todos gaúchos: Dyonélio Machado, Fausto Wolff e Érico Veríssimo.
O exame, nem precisa ser minucioso, da obra de Carlos Nejar permite concluir que a liberdade é íntima da solidariedade e o autor cerra fileira com os mais fracos, artista consciente de sua função, guardião dos sonhos, das esperanças e das liberdades.
Está em Árvore do Mundo o poema que segue.
Povo
I
Enchi meus cadernos
na extensão da infância.
Enchi meus cadernos
com letras de manhã,
domingos, florestas.
Enchi meus cadernos
de povo
e ao povo
enchi de mar.
II
Onde começo e acabo
é povo.
Onde o sol leva seu recado,
é povo.
Onde há pássaros,
é povo.
Onde o trator escava,
é povo.
E a plantação da noite:
a liberdade.
Para ilustrar o tópico solidariedade, permitam-me um trecho de um livro imprescindível, Carta aos loucos : " Mas o zumbir das vozes, chamou a atenção de um mendigo deitado no banco da praça, ali perto. E de mais outro, adiante, sob o cinamomo. Roupas gastas, olhos gastos - Alduno e Reberino - , condes de uma miséria nômade: com as barrigas expostas nos olhavam. Como se lhes permitíssemos viver.
Seus sapatos tinham buracos, e dedões saiam para fora. Fui falando para eles, falando. As diferenças se retraem. Se o Céu nos tolera, se o Oceano nos foge e a Noite não se entorta, não há classes na luz."
Enquanto isso, desconhecedores dos nossos grandes escritores, emprestamos nossos submissos e colonizados ouvidos a cantilena soporífera de Saramago.
Até quando?
"O tempo é uma inteligência que transluz, quando pergunta. E é ciência para o mistério de o destino ficar tempo e o tempo virar destino."
E o tempo que corre no pampa não guarda parentesco com nenhum outro tempo, quer da metrópole, quer da floresta, é um tempo exigente que obriga aos olhares nenhuma pressa e aos ouvidos a intimidade com o silêncio. Como autêntico pampiano o poeta presta reverência ao seu avô, um mensageiro do tempo, e apresenta sua terra, seus conterrâneos e suas tradições sem apelar para patéticos estereótipos ou carnavalescos arquétipos. A Espuma do Fogo traz o calor vivo fruto da união da fantasia com a audácia. Um dia, que já vai distante, minha filha referindo-se ao seu avô dizia estar com saudade do seu "pai antigo", talvez em sua inocência de começo de vida ela tenha encontrado a expressão correta e Carlos Nejar ao guardar seu avô Miguel nos escaninhos de sua infância lhe concede a imortalidade enquanto sabiamente conclui que o que forma, informa , transforma e..."velho é o tempo."
O poeta conhece como poucos os disfarces do tempo, dos ventos e as artimanhas da nostalgia, sabe que o tempo não costuma emprestar mas tem enorme prazer em cobrar e se a angústia não chega a ser uma coxilha intransponível tampouco o pampa transpira o orvalho acre do avesso da liberdade. Só mesmo a amplitude pampeana pode conceder o espaço e conceber as coxilhas da angústia, da nostalgia, do fogo, da espiritualidade e do amor.
A Espuma do Fogo é uma vasta janela onde se vislumbra a imensidão do pampa e as origens gauchescas amalgamadas a universalidade do poeta, legitimada na diversidade dos registros linguisticos em plena harmonia com a linguagem mais coloquial a vasculhar os rincões da memória deixando a certeza inconteste que cultivamos lembranças que nos farão menos solitários na hora da morte.
"No coice da estrela d'alva, ao amanhecer com as vinhas, eu fico. A morte é sozinha, por vezes, adolescente. Mas o pampa sabe sempre, com presteza o que ela sente."
Simbolismos e heroísmos na medida exata fazem de A Espuma do Fogo algo fora do comum no ambiente literário, em se tratando de poesia não resta a menor dúvida que estamos diante de uma obra incomum que permitirá aos desavisados, e infelizmente não são poucos, olhar para Carlos Nejar como se este fosse um peixe fora d'água quando na verdade este poeta imortal é água cristalina a dessedentar o tempo e os ventos. É vida.
E justamente da arbitrariedade da vida vem a tona seu sub produto mais valioso, a aventura humana comovente e cruel onde a liberdade é o prêmio único no embate de cartas marcadas e sendo assim, o que fazer nesse interregno onde a angústia , fruto da consciência, transcende o devaneio? Poderá a morte ensinar mais do que a vida? A resposta está na incessante busca.
O poeta pampiano não se acomoda tampouco se acovarda, impõe movimento e em sua sofisticada simplicidade busca a natureza, o lirismo de suas raízes, sem cair nas teias luminosas do escapismo e verseja na intenção de encontrar Deus.
Nejar guarda um misticismo sutil que ao aflorar permite ao poeta forjar palavras e expressões de uma sonoridade pouco usual atestando sua vitalidade e precisão das imagens, sinais que o individualizam como um pintor de cuja palheta saltam cores de um aço cortante manifestando seu amor a terra, aos seus familiares a sua Elza, ao tempo, ao vento....
"Deito com meu avô Miguel na terra. E quem te ama, Elza, é pampa, este vaso de oliveira e almas. Parras labaredas que a lareira abrasa, os rostos queimando, sem queimar a sarça. E deito-me , Elza, contigo no poema."
Em seu romance anterior Carlos Nejar nos encantava com Letícia, a mulher ideal, a imagem da mulher projetada em pleno céu, aquela merecedora do seu amor e dos seus enigmas.Uma nuvem livre, inquieta, aliada do tempo.
Aspecto pouco analisado na obra do pampiano Nejar é sua preocupação com o meio ambiente, Letícia subia num pé de amoreira em protesto contra a derrubada -
Não podem! Esta árvore também sou eu!, repetindo o gesto de estudantes porto alegrenses na década de setenta. Da borda do Poço dos Milagres Nejar mostra o cuidado dos pescadores com o rio, os
"peixes cheios de alma" e os pássaros. É importante dizer que se em A Engenhosa Letícia.... a protagonista estava bem definida desde o título, neste as personagens guardam o mesmo grau de importância. Talita não é mais nem menos que Viriato, cavalo, ora zaino, ora alazão, interlocutor e confidente da menina. O finado Dom Seráfico, prefeito à época de Letícia, embora apenas lembrado, não perde em significado para o Anjo chamado Gênero Humano. No entanto, sou capaz de apostar que a nuvem, a Letícia deste Poço dos Milagres, a personagem que ora permite a luz ora impõem a escuridão, sem dúvida nenhuma, é a literatura e o narrador parafraseando Nelson Rodrigues, teatrólogo famoso que transitou por Pontal:
"- Os inteligentes estão matando o romance. E há que chamar os burros para salva-lo. - À s vezes de si mesmos." - com sua fina ironia nos obriga a refletir sobre o que não só as editoras com seus gênios por uma semana. estão fazendo para destruir a verdadeira literatura, mas também até que ponto nós leitores somos coniventes consumidores do lixo nacional e estrangeiro.
Abro um parêntese para tentar mostrar algumas razões que me levam a tratar a obra de Nejar com tamanha distinção Para tanto utilizarei um livro, por demais emblemático. O Carta aos loucos.
Amar é distinguir, separar, elevar, necessitar, estar à disposição, o resultado é a emoção. Pois bem, como evitar a emoção, mesmo no alvorecer da trama, quando o autor recebe o leitor com períodos como os que seguem ?
- O espírito em nós é como a água. Ao parar, apodrece.
E ela sorriu com as profundezas.Flutuava sob a lua. E me lembrei de um surdo ancestral que se habituara a repetir a mesma frase:
Duas coisas há que um homem desaprende: recurvar-se e calar.
E me calava. E obedecia à luz.
Mais adiante:
"Ao não me deixar falar, cheguei ao ponto de não escutá-lo. O silêncio é mais eloqüente do que a dor. E a dor, mesmo fanhosa, jamais será política. Não Tendo eu nada com a república que aplicava as aptidões de logro com o discurso tão diferente da ação.
Eu era um escrevente. Para uns, lúcido, e para outros, louco. Só liderava meus fantasmas sem governo."
Creio que o amor não seja pra sempre, pois é vivo e tudo que é vivo tem que morrer Mas o que me interessa é o mundo da fantasia e da minha imaginação o que me leva a acreditar num amor imortal. É isso. Não, eu não tenho 17 anos, tenho muito mais e não acredito em nada, nada mesmo que não seja produto da fantasia, do imaginado, do sonhado. Eu sempre sonhei com a relevância da arte, meus pais também. Tanto que permitiram os estudos da literatura e da música. O sonho naqueles dias de meninice já era sonhado, não eu não tenho 17 anos, tenho muito mais e acredito num sonho em especial, um sonho de liberdade e justiça.
Acreditar, tão somente, não basta é preciso viver a realidade com fantasia, fazer da vida, um sonho bom. Peço, no entanto, que não me obrigue a despertar na melhor parte. Viver é preencher o álbum dos acontecimentos. E só merece esse título aquilo que transforma. Um acontecimento pode ser o desabrochar de uma rosa, caso eu presenciasse, o passarinho rompendo a casca do ovo, sob o olhar deste aprendiz. No entanto isso nunca aconteceu, quando eu chego, eles já estão lá, a rosa e seu perfume, o pássaro e seu canto. Na minha vida foram raros os acontecimentos. Cedo, muito cedo, me dei conta que eu era apenas um fragmento. Daí a acreditar que o fragmento era do nada, um pó do futuro não foi preciso muita reflexão, confesso. Pai, amigos, filhos me mantinham num permanente recreio, por um tempo eles foram suficientes mas tudo tem um limite, o abismo me aguardava e eu, covarde, apenas olhava. Até que surgiu a literatura,
Veríssimo, Dyonélio, Fausto, Lygia, Drummond... e hoje, sem afobação, posso amar muito mais a todos que me amam e aqueles que não são amados por ninguém. Já não me sinto um grão do nada mas um pedregulho do amor. Pela sua inestimável contribuição, Carlos Nejar, mestre e irmão, muito obrigado.
Com meu amor. Sem esgotar a razão.
Luíz Horácio
Professor de Literatura, escritor, autor dos romances Perciliana e o pássaro com alma de cão-ed.Conex e Nenhum pássaro no céu-Ed. Fábrica de Leitura.