sábado, 22 de novembro de 2008

Gibran Khalil Gibran
( جبران خليل جبران ) nasceu em 6 de dezembro de 1883, na cidade de Bisharri, no sopé da Montanha do Cedro, no norte do Líbano. O pai, um coletor de impostos, bebia e jogava, mas vinha de uma linhagem de intelectuais e de religiosos maronitas pelo lado da mãe. Khalil não teve uma educação formal, mas aprendeu inglês, francês e árabe ao mesmo tempo, além de revelar-se uma promessa precoce como artista, desenvolvendo uma paixão por Leonardo da Vinci aos seis anos de idade. Aos onze anos, toda a família, com exceção do pai, emigrou para a América e estabeleceu-se em uma comunidade de imigrantes libaneses no bairro chinês de Boston. A mãe trabalhava como costureira, e o irmão mais velho, Boutros, abriu um armazém. Gibran freqüentou a escola, onde seu nome começou a ser escrito como Khalil. Foi mandado para aulas de desenho e em seguida foi apresentado ao fotógrafo Fred Holland Day, que o usou como modelo e lhe encomendava desenhos.
Em 1898, Gibran foi mandado para casa para freqüentar a escola Al Hikma, em Beirute. Estudou literatura francesa romântica e árabe. Em 1902, voltou para a família via Paris. Uma das irmãs, Sultana, morreu de tuberculose antes da sua chegada, e foi logo seguida pelo irmão, Boutros. Dentro de apenas algumas semanas, a mãe morreu de câncer, deixando-o com a irmã caçula, Mariama. Gibran vendeu o armazém e passou a ganhar a vida como pintor. Mais tarde, teve um romance com a jornalista Josephine Peabody, que o apresentou a Mary Haskell, uma professora que viria a ser sua patrocinadora e colaboradora. Sua carreira como escritor estabeleceu-se quando começou a escrever para o jornal Mohajer, de emigrantes árabes.
Em 1905, o primeiro livro, AI-Musiqah, foi publicado. Seguiram-se mais artigos e livros, a maioria criticando o Estado e a Igreja e, em 1908, seu livro de poemas em prosa, Ai-Arwah ai Mutamarridah, foi proibido pelo governo sírio e ele foi excomungado pela Igreja Sida. Mary Haskell patrocinou-lhe então uma estada de dois anos em Paris, onde Gibran estudou pintura na École des Beaux-Arts e na Académie Julien, onde fez uma exposição em 1910.
De volta aos Estados Unidos, depois de Mary Haskell ter recusado seu pedido de casamento, mudou-se para Nova lorque e trabalhou como pintor de retratos. Fazia exposições regularmente, e um livro com seus desenhos foi publicado. Em 1912, a publicação de sua novela Broken Wings rendeu-lhe uma correspondência permanente com May Ziadah, uma jovem libanesa que vivia no Cairo. Mary Haskell encorajou-o a escrever em inglês e, em 1915, apareceu um poema, Pie Perfect World, seguido do primeiro livro em inglês, Pie Madman, em 1918. Durante este tempo, continuou a escrever em árabe e a trabalhar como artista.
Em 1920, Gibran tomou-se um dos fundadores de uma sociedade literária chamada Arrabitali ou O Laço da Pena. Sua carreira como pintor e escritor florescia, mas estava com problemas cardíacos e começou a beber muito para mitigar as dores no coração. Era convidado com frequência a discursar para congregações de igrejas liberais.
Em 1922, foi inaugurada uma exposição de seus desenhos a bico de pena e aquarelas e, em 1923, foi publicada sua obra-prima, O Profeta. Foi um sucesso imediato e as vendas nunca caíram. Publicou vários outros trabalhos em inglês e em árabe, sendo o mais notável Jesus, Filho do Homem (1928), antes de morrer, em Nova York, de insuficiência hepática e tuberculose incipiente em 10 de abril de 1931. Gibran nunca perdeu a paixão pelo Líbano, sua terra natal, onde foi enterrado e onde é considerado uma lenda.


ALGUNS TRECHOS DE SUA VASTA OBRA

A PRECE

"Vós orais na aflição e na necessidade; também devieis orar na alegria e nos tempos de abundância.
Pois o que é a oração senão a expansão de vós no ar vivo?
E se vos dá consolo largar vossa escuridão no espaço, também vos deve dar felicidade lançar o vosso coração à aurora.
E se só conseguirdes chorar quando a vossa alma vos chamar à oração, ela vos estimulará até que, ainda a chorar, vos comeceis a rir.
Quando rezais encontrais no ar aqueles que rezam à mesma hora e que, se não fosse na oração, nunca encontrarieis.
Por isso deixai que a vossa visita a esse templo invisível não seja senão para o êxtase e doce comunhão.
Pois não deveis entrar no templo com outro objectivo que não seja o de pedir aquilo que não recebereis:
E se lá entrardes com humildade assim permanecereis:
Ou mesmo se lá entrardes para pedir favores para os outros não sereis ouvidos.

É suficiente que entreis invisíveis no templo.
Não vos posso ensinar a orar por palavras.
Deus não ouve as vossas palavras a não ser quando ele próprio as murmura através dos vossos lábios.
E não vos posso ensinar a oração dos mares e das florestas e das montanhas.
Mas vós que nascestes nas montanhas e nas florestas e nos mares, encontrareis a oração nos vossos corações, e se escutardes na quietude da noite, ouvi-los-eis dizer em silêncio:
"Nosso Deus, que sois o nosso eu alado, é a vossa vontade em nós que quer.
E o vosso desejo em nós que é desejado.
É a vossa vontade para que tornemos as nossas noites que são vossas, em dias
que são igualmente vossos.
Não vos podemos pedir, pois conheceis os nossos desejos antes de nós
próprios nascermos, vós sois o nosso desejo, e em dar-nos mais de vós, dais-vos todo."
(Para ouvir o texto original, acesse:
http://www.youtube.com/watch?v=udvrO_Ef7ZE ).


A Tempestade

O Pássaro e o homem tem essências diferentes.
O homem vive à sombra de leis e tradições por ele inventadas;
o pássaro vive segundo a lei universal que faz girar os mundos.
Acreditar é uma coisa; viver conforme o que se acredita é outra.
Muitos falam como o mar, mas vivem como os pântanos.
Muitos levantam a cabeça acima dos montes;
mas sua alma jaz nas trevas das cavernas.
A civilização é uma arvore idosa e carcomida,
cujas flores são a cobiça e o engano e cujas frutas
são a infelicidade e o desassossego.
Deus criou os corpos para serem os templos das almas.
Devemos cuidar desses templos para que sejam
dignos da divindade que neles mora.
Procurei a solidão para fugir dos homens, de suas leis,
de suas tradições e de seu barulho.
Os endinheirados pensam que o sol e a lua e as estrelas se levantam
dos seus cofres e se deitam nos seus bolsos.
Os políticos enchem os olhos dos povos com poeira
dourada e seus ouvidos com falsas promessas.
Os sacerdotes aconselham os outros,
mas não aconselham a si mesmos,
e exigem dos outros o que não exigem de si mesmos.
Vã é a civilização. E tudo o que está nela é vão.
As descobertas e invenções nada são senão brinquedos
com a mente se diverte no seu tédio.
Cortar as distâncias, nivelar as montanhas,
vencer os mares, tudo isso não passa de
aparências enganadoras, que não alimentam o
coração e nem elevam a alma.
Quanto a esses quebra-cabeças, chamados ciências e artes,
nada são senão cadeias douradas com os quais o homem
se acorrenta, deslumbrados com seu brilho e tilintar.
São os fios da tela que o homem tece desde o inicio
do tempo sem saber que, quando terminar sua obra,
terá construído a prisão dentro da qual ficará preso.
Uma coisa só merece nosso amor e nossa dedicação, uma coisa só...
É o despertar de algo no fundo dos fundos da alma.
Quem o sente não o pode expressar em palavras.
E quem não o sente, não poderá nunca conhecê-lo através de palavras.
Faço votos para que aprendas a amar as tempestades em vez de fugir delas.



Entre as Colinas

Entre as colinas,quando vos sentardes à sombra frescados álamos brancos,partilhando da paz e da serenidade dos campose dos prados distantes,então que vosso coração diga em silêncio:"Deus repousa na Razão".E quando bramir a tempestade,e o vento poderoso sacudir a floresta,e o trovão e o relâmpago proclamarema majestade do céu,então que vosso coração digacom temor e respeito:"Deus age na Paixão".E já que sois um sopro na esfera de Deuse uma folha na floresta de Deus,também devereisdescansar na razão e agir na paixão.



TRECHO DO PROFETA

Sete vezes desprezei minha alma:
Quando a vi disfarçar-se com a humildade para alcançar a grandeza;
Quando a vi coxear na presença dos coxos;
Quanto lhe deram a escolher entre o fácil e o difícil, e escolheu o fácil;
Quando cometeu um mal e consolou-se com a idéia de que outros cometem o mal também;
Quando aceitou a humilhação por covardia e atribuiu sua paciência à fortaleza;
Quando desprezou a fealdade de uma face que não era, na realidade, senão uma de suas próprias máscaras;
Quando considerou uma virtude elogiar e glorificar.


Fontes:
http://www.paralerepensar.com.br/gibran.htm
http://www.vidaempoesia.com.br/gibrankhalilgibran.htm

sexta-feira, 21 de novembro de 2008



A LOUCURA EM SHAKESPEARE E FREUD


Quem é o paciente psicótico? (Freud: O Caso Schreber)
Questão impossível de ser respondida sem incorrer em uma certa redução que toda generalização acarreta, se levarmos em conta que as pessoas são sempre mais ricas e multifacetadas do que as conceituações que fazemos sobre elas, ou a partir delas. (...) Um psicótico é uma pessoa que teve, em algum momento da vida, uma situação tal que o obrigou a romper relações: com os outros, com o mundo, com a realidade. Podemos pensar que tratou-se de um evento traumático que teve como conseqüência um retraimento, um fechamento em si mesmo (...), quando seu psiquismo puser-se a construir alguma tentativa de restabelecer-se, de retomar a vida. Nesse momento, surgem formações como os delírios para tentar dar conta de tal reconstrução.
Há algo no psicótico que, se não é generalizável, é ao menos um ponto de apoio a partir do qual é possível falar, intervir e, mais ainda, compreender um pouco daquele sofrimento que a pessoa apresenta: o delírio. Nem todos os pacientes deliram mas, os que assim o fazem permitem o estabelecimento de um certo tipo de relação com o analista(...). A histeria, a obsessão e a psicose alucinatória partem de um mesmo princípio: a tentativa de esquecimento de algo indesejado e se desdobram de formas diferentes a fazer algo com o afeto que sobra. A psicose faz alucinações e delírios. Ao escrever sobre Schreber, Freud traz a idéia de que a formação dos sintomas – conversões, ideações obsessivas, alucinações, delírios – parte de um compromisso qualquer entre instâncias em prol de uma defesa. Entendo todas essas produções como sintomas, jogos de forças entre recalcante e recalcado, censor e censurado. Trata-se de produções que são o aparente que remete a outros desdobramentos, resultado do que se anuncia e do que se busca suprimir e, portanto, de um conflito de forças. Na psicose alucinatória a defesa é a rejeição da representação incompatível juntamente com o afeto, o que faz Freud afirmar que essa seria a defesa melhor sucedida de todas. No entanto, ao romper com a representação incompatível que está associada a alguma parcela da realidade, rompe-se também com essa realidade de maneira parcial ou total
. Fonte: Alessandra Ribeiro

LEAR: Tu me chamas de bobo, rapaz?
BOBO: Abandonaste todos os teus outros títulos, mas esse nasceste com ele."
Shakespeare: Rei Lear. (Ato I, 4).
“A formação delirante que julgamos ser uma produção patológica é, na verdade, uma tentativa de cura, um processo de econstrução.” Freud: O Caso Schreber.
O problema da loucura recebeu uma iluminação diferente a partir de Freud, que foi o primeiro a ver a personalidade como um continuum que vai da sanidade à loucura. A doença mental vista por Freud como regressão inclui, sempre, aspectos de desorganização assim como tentativas no sentido de dar nova estrutura à personalidade. Mesmo na esquizofrenia é sempre possível encontrar aspectos sadios e mecanismos neuróticos misturados com os aspectos delirantes e alucinatórios. Ainda no delírio Freud via a primeira tentativa dos pacientes de restaurar o sentido de vida perdido na enfermidade. Por outro lado, procurava ver conflitos subjacentes nas pessoas ditas normais, que permanentemente ameaçam de desorganização a qualquer de nós. A idéia central da psicanálise é a de um estruturalismo genético que faz com que formas e conteúdos aparentemente incompreensíveis, tais como sonhos, delírios, alucinações e atos falhos possam ser compreendidos dentro de uma estrutura maior que alcance os planos conscientes e inconscientes de cada pessoa e cuja origem possa ser seguida desde o nascimento.

Em Shakespeare, também, os problemas da loucura são considerados em sua íntima conexão com a sanidade e mesmo com a sabedoria. Vamos considerar, para efeito de exposição, os três tipos de loucura que aparecem em suas peças: a loucura dos Bobos, a loucura fingida e a loucura verdadeira.
1)
Os Bobos
Os Bobos funcionam mais ou menos como os coros das tragédias gregas, pois têm também este sentido de promover o aprendizado do herói. O Bobo não é propriamente uma pessoa e sim uma função exercida nas cortes medievais. Tal função caracteriza-se por uma licença especial para poder dizer certas verdades, mesmo que desagradáveis ao rei ou a outras personagens da corte – “Licensed fools”. Por esta razão, os sentimentos dos personagens da corte em relação ao Bobo são sempre ambivalentes. Ele é tolerado e até mesmo amado, mas é também maltratado em inúmeras circunstâncias. Em nenhuma outra peça, esta função do Bobo aparece com tamanha nitidez quanto no Rei Lear. Referindo-se aos maus-tratos que Lear recebe das filhas, após dividir seu reino entre as duas, o Bobo comenta:
...
“Dá-me um ovo, tio, que darei duas coroas.
LEAR –
Que duas coroas seriam essas?
BOBO –
Bem, partido o ovo em duas metades e comidas as substâncias, as duas coroas do próprio ovo. Quando partiste tua coroa ao meio e deste ambas as partes, carregaste teu burro nas costas através do lamaçal. Tinhas pouco sizo debaixo de tua coroa calva, quando
abdicaste tua coroa de ouro. Se falo como Bobo, seja açoitado o primeiro que isto notar.”
O Bobo representa o modo mais expressivo da sabedoria na loucura. Em suas falas, aparentemente sem sentido (nonsense), eles atingem a profunda ambigüidade característica do ser humano. Tanto que, no Rei Lear, ele funciona como um verdadeiro intérprete do rei, exercendo um papel psicoterápico fundamental para a recuperação de Lear. Quando Lear reencontra Cordélia, o Bobo simplesmente desaparece da peça. Cordélia que passa a ocupar-se de restaurar a saúde mental do rei, entra no lugar do Bobo. Shakespeare explicita esta relação fazendo Lear chamar Cordélia de Boba na última cena da peça. (Ato V, Cena 3.)
LEAR – “E minha pobre boba foi enforcada. Não, não tem vida. Porque um cão, um cavalo, um rato estão vivos e tu, sem um simples sopro sequer!Não voltarás nunca mais, nunca,
nunca.”
Segundo Harold Jenkins, todo Bobo tem a função de desfazer idealizações, e exemplifica este modo de conceber o Bobo com o Touchstone de Como Gostais. Touchstone representa o contraponto da idealização da vida na floresta de Arden, bucólica, exaltada como mais natural e despreocupada do que a vida protocolar da corte. Touchstone está sempre a nos lembrar dos confortos da vida doméstica. É ele quem nos fala do cansaço físico, quem se lembra da necessidade de “almoço, jantar e horas de dormir”. Touchstone é quem sabe das horas, pois é o único a possuir uma espécie de relógio. Em plena floresta, ele é capaz de dizer: “São dez horas”. E de fazer este comentário realista acerca do tempo:
“E, assim, de hora em hora, nós amadurecemos e amadurecemos e depois, de hora em hora, apodrecemos e apodrecemos”.
O Bobo é uma das duas personagens a lembrar a decadência e a morte, dentro da vida idealizada da floresta de Arden. O outro é Jacques, um “melancólico” seguidor do rei que exerce também uma função de Bobo, denunciando a poluição da floresta pelos homens e nos lembrando a decadência humana, em sua conhecida fala sobre as sete idades do homem.
JACQUES –
O mundo inteiro é um palco, todos os homens e mulheres não passam de atores. Têm suas entradas e saídas e um homem em seu tempo representa muitos papéis e sete idades têm seus atos. Primeiro, é o infante que dá vagidos e vomita nos braços da ama; depois, é o escolar chorão com a pasta e a reluzente cara de aurora que, semelhante a um caracol, se arrasta de má vontade para a escola. Em seguida, é o apaixonado, suspirando como um forno, como uma balada triste composta para as sobrancelhas de sua amada. Depois, é um soldado,
cheio de estranhos juramentos e barbado como um leopardo, zeloso pela própria honra, pronto e atrevido na querela, procurando a bolha de ar de reputação até na boca dos canhões. Mais tarde, é o juiz, com o belo ventre arredondado, repleto com um bom capão, os olhos reveros e a barba formalista, cheio de frases graves e de lugares-comuns. E, assim, representa seu papel. A sexta nos transforma no personagem do magro e ardiloso Pantalhão, com óculos no nariz e a bolsa do lado. As calças de sua juventude, que conservou cuidadosamente, seriam um mundo largo demais para as magras canelas e a forte voz viril,
convertida novamente em falsete infantil, emite agora sons agudos e assoviados. Finalmente, a cena derradeira, a que termina esta estranha história cheia de acontecimentos, é a segunda infância e o total esquecimento, sem dentes, sem olhos, sem paladar, sem coisa alguma.”
2) A loucura fingida


Alguns personagens de Shakespeare vão fingir-se de loucos a fim de conseguir um determinado objetivo. O caso mais conhecido é o da falsa loucura de Hamlet, através da qual ele visava obter dados que incriminassem o rei seu padrasto na morte de seu pai, ficando, ele próprio, livre de qualquer suspeita. Logo no Ato I, Hamlet vai anunciar a Horácio sua intenção de fingir-se de louco e fazê-lo jurar que não irá denunciá-lo. Seu intuito está ligado à visão do fantasma do pai. (Ato I, 5).
... “por muito rara e extravagante que seja minha conduta, visto que, talvez, no futuro julgue oportuno afetar maneiras estranhas, jurai que, ao ver-me em semelhantes situações, nunca dareis a entender... que sabeis alguma coisa a meu respeito”.
Sendo a loucura fingida uma loucura com uma finalidade, ela é, necessariamente também, uma loucura com método. No Hamlet, é Polônio quem vai perceber esta característica no Interrogatório a que submete o príncipe para descobrir as “causas” de seu estado. Após ouvir de Hamlet várias respostas aparentemente sem sentido, porém cheias de insinuações, Polônio conclui:
POLÔNIO (à parte) –
Embora seja pura loucura, há método nela... Não desejais abrigar-se do ar, meu senhor?
HAMLET –
Em meu túmulo?
POLÔNIO –
É claro, lá ficamos ao abrigo do ar. (À parte) Como são, às vezes, engenhosas as respostas dele! Felicidade que só acontece com a loucura e que nem a mais sã razão e lucidez não poderiam atingir com tanta sorte.
Outro caso de loucura fingida ocorre em Rei Lear. Edgar, filho de Gloster, um nobre amigo de Lear, pretende esconder sua posição, para escapar da fúria de seu pai que se voltara contra ele, instigado por seu meio-irmão, Edmundo. Para isto, o método adequado é disfarçar-se de mendigo louco e ocultar-se numa pobre choupana na floresta. Uma das cenas mais curiosas da tragédia é a do encontro de Lear, o louco verdadeiro, com Edgar, o falso-louco. Este vai ser considerado por Lear como um sábio, capaz de aconselhá-lo em seus problemas. (Cena 6.)
“LEAR - ... Tu é a própria coisa. O homem, sem as comodidades da civilização, não passa de um pobre animal nu e bifurcado como tu és. Fora, fora coisas emprestadas! Vamos, desabotoemo-nos aqui. (Rasgando as próprias roupas.)”
“GLOSTER –
Entrai comigo. Meu dever não saberia curvar-se em tudo às duras ordens de vossas filhas. Por mais que me hajam ordenado que fechasse as portas de minha casa e deixasse que ficásseis à mercê desta noite tirânica, arrisquei-me a vir procurar-vos, a fim de conduzir-vos para onde encontrareis pronto fogo e alimento.
LEAR –
Deixe-me falar primeiro com este filósofo. Qual é a causa do trovão?
KENT –
Meu bom senhor, aceitei-lhe o oferecimento, entrai na casa.
LEAR –
Quero trocar uma palavra com este letrado tebano. Em que te aplicas?
EDGAR –
Em evitar o demônio e matar piolhos.”
3) A loucura verdadeira
São numerosos os loucos que aparecem nas peças de Shakespeare. Loucos de todos os tipos, revelando seu grande conhecimento dos meandros da loucura. Um dos casos mais bem caracterizados é o da Ofélia de Hamlet. Trata-se de uma psicose típica, desenvolvida pela trama das mensagens contraditórias em que ela se vê envolvida pelo irmão, pelo pai e pelo próprio Hamlet. Ofélia, que cedo perdera a mãe, fica fragilizada diante dos homens. O pai e o irmão a proíbem explicitamente de aceitar a corte que lhe faz o príncipe Hamlet. Por outro lado, o pai atribui a loucura de Hamlet à rejeição por Ofélia, portanto à obediência da filha aos seus conselhos. Hamlet, que a princípio mostrara-se amoroso, por sua vez passa a maltratar Ofélia quando decide fingirse de louco. No Ato III, vemos como Ofélia é confundida pela contradição do príncipe.
“HAMLET - ... Amei-te, antes...
OFÉLIA – Foi na verdade, meu senhor, o que me fizeste acreditar.
HAMLET –
Não deverias ter acreditado em mim, pois a virtude não pode ser inoculada em nosso velho tronco sem que nos fique algum mau ressaibo. Eu não te amava.
OFÉLIA – Tanto maior foi minha decepção.
HAMLET –
Entra para um convento. Por que desejas ser mãe de pecadores? Quanto a mim, sou relativamente honesto e, contudo, de tais coisas poderia acusar-me, que melhor seria que minha mãe não me tivesse posto neste mundo. Sou muito orgulhoso, vingativo, ambicioso,
com mais pecados na cabeça do que pensamentos para concebê-los, fantasia para dar-lhes forma ou tempo para executá-los. Por que hão de existir pessoas como eu para se arrastarem entre o céu e a terra? Todos nós somos consumados canalhas; não te fies em nenhum de nós. Segue teu caminho para o convento. Onde está teu pai?

OFÉLIA –
Em casa, meu senhor.
HAMLET – Fecha bem as portas, para que somente em casa represente ele o papel de bobo. Adeus!
OFÉLIA – Ó céus clementes, ajudai-o!” A loucura de Ofélia é tão bem definida que chega a mostrar um quadro de dissociação mental típica:
“REI –
Como estais passando, bela dama?
OFÉLIA –
Bem, Deus vos ajude! Dizem que a coruja é filha do padeiro. Senhor, sabemos o que somos, mas não sabemos o que possamos ser. Deus abençoe vossa mesa!
REI –
Está pensando no pai?
OFÉLIA –
Por favor, nem uma palavra disto; mas quando perguntarem o que significa, dizei o seguinte: (Canta.)
É dia amanhã de São Valentim.
Bem cedo estarei à tua janela,
Donzela que sou, pra ser Valentina.
Ergue-se ele então, sua roupa veste,
Abre-lhe a porta de seu dormitório.
Donzela ela entrou, mas quando saiu
não mais era como ali tinha entrado.

O significado claramente sexual dessa fala tem aspectos que lembram a teoria freudiana da etiologia das doenças mentais. A casta Ofélia sonha com perder sua virgindade. Mesmo em seu delírio, vemos os temas da sexualidade e do luto pela morte do pai expressos de modo dissociado. Além da pulsão sexual na base da doença mental, vemos, em outro caso, a loucura originada pela pulsão de morte. É o que ocorre com Lady Macbeth pelo incentivo dado ao esposo para cometer o assassinato do rei Duncan, a fim de que ele próprio se torne rei. A relação entre a culpa e a loucura fica nítida no Ato V, 1. Aí, vemos um exemplo gritante do postulado de Freud de que certos doentes “preferem” inconscientemente adoecer a sentirem-se culpados por suas ações.

“MÉDICO – Que está fazendo agora? Olhai como esfrega as mãos.
DAMA DE COMPANHIA –
Costuma fazer isso: fingir que está lavando as mãos. Vi-a persistir nesse gesto durante bem um quarto de hora.
LADY MACBETH –
Por mais que eu faça, esta mancha não sai.
MÉDICO –
Atenção! Está falando. Vou tomar nota do que ela disser para guardar lembrança mais viva.
LADY MACBETH –
Vai-te, mancha maldita! Vai-te digo!
- Uma, duas: é tempo de pôr mãos à obra. – Como é lôbrego o Inferno!
-
Por quem sois, meu senhor, que vergonha! Um soldado com medo? – Por que havemos de recear que alguém saiba, se ninguém nos pode pedir contas? – Mas quem poderia ter imaginado que o velho tivesse tanto sangue nas veias?
MÉDICO –
Ouviste bem o que ela disse?
LADY MACBETH –
O Tane de Fife tem esposa: onde está ela? – Que coisa! Estas mãos nunca ficarão limpas? – Parai com isto, meu senhor, parai com isto: esses vossos sobressaltos podem pôr tudo a perder.
MÉDICO –
Vamos embora, vamos embora: ouvimos o que não deveríamos ter ouvido.”
O médico que passara observando a doente durante longo tempo acaba por concluir que Lady Macbeth precisava mais dos serviços de um “padre do que de um médico”. No início da cena, é dito que Macbeth estava ausente. Ora, o que percebemos através da peça é uma inversão de papéis dentro do casal de criminosos. No início, é Lady Macbeth a figura forte que incentiva o marido a assassinar Duncan e, quando ele fraqueja, é ela quem lhe diz que ele deve ser homem e não temer. Agora, é ele quem dá forças à mulher. Portanto, sua ausência contribui para desencadear o surto psicótico. Outro fato notável é que, embora se atribua a Lady Macbeth sonambulismo, na cena, como nota o médico, ela está de “olhos abertos” ao que a aia responde que “seus sentidos estão fechados”. Bion nota que o psicótico é alguém que não está dormindo mas também não está acordado, pois dentro do delírio e das alucinações tudo se passa como se ele estivesse vivendo na realidade interna, apenas prestando pouca atenção aos estímulos externos. Esse é. Aliás, o caso de todos os loucos. Em Rei Lear, vemos como na cena da loucura na tempestade o rei está tão ocupado dentro de sua luta interna contra “as filhas pelicanas” que aparentemente não sente frio nem medo. A loucura de Lear é desencadeada pela perda da fantasia onipotente de distribuir seu reino entre as filhas e continuar com as vantagens do poder. A filha que havia sido desprezada por não entrar no jogo de adulação do pai é expulsa do reino. Mais tarde, no reencontro com Cordélia, esta filha vai marcar a aceitação dos limites, inclusive do limite maior que é a própria morte. Então Lear, que enlouquece por não suportar limites, vai aprender com Cordélia toda a extensão de sua impotência. Assim que desperta da sonoterapia a que o submetera o médico, Lear, pela primeira vez na tragédia, revela a sua idade: “Oitenta e tantos anos, nem uma hora a mais nem a menos”. Ao aceitar, relutante, a morte de Cordélia, na última cena da peça, o rei está pronto para morrer também. Em suma, vimos nos três exemplos deste capítulo como Shakespeare compreendia a loucura em sua gênese sexual e agressiva. Intui também a fantasia de onipotência característica de todos os loucos.
(Extraído de Freud e Shakespeare, de E. Portella Nunes e C. H. Portella Nunes. Imago Editora, 1989).

http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/em_obras_alessandra_ribeiro.htm
http://www.bernardojablonski.com/pdfs/graduacao/loucura_shakespeare_freud.pdf

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

MEU LIVRO DE CABECEIRA




O que é mesmo um livro de cabeceira? O que lemos antes de dormir? Nesse caso, eu não possuo nenhum, pois não gosto de livros no quarto, nem tenho o hábito de ler à noite. Sempre vi os livros como entidades vivas, pulsantes, cheias de peripécias. Temo que os personagens saiam das páginas, movimentem-se fora das frases em que foram urdidos, e perturbem o meu sono. Não os quero nem na porta do meu quarto. Já bastam as impressões que os seus autores deixam em mim, nem sempre agradáveis. Por isso não leio à noite, nem vejo filmes, e até evito o teatro. "A noite fez-se para dormir", diz um personagem de Garcia Lorca.
Qual seria esse livro de cabeceira que sem freqüentar o meu quarto, sempre esteve ao meu lado? Que livro se confunde comigo a ponto de eu misturar os seus personagens com a minha existência? Sem dúvida, uma velha "História Sagrada", que nada mais é do que uma seleta de textos da "Bíblia" hebraica, solenemente apresentada em dois subtítulos: Antigo Testamento e Novo Testamento. Não sei se minha memória confundiu-se ou se os dois volumes eram mesmo ilustrados por Gustave Doré, o ilustrador da "Divina Comédia", do "Dom Quixote", dos "Contos de Perrault", das "Aventuras do Barão de Munchausen" e das "Fábulas de La Fontaine".
Minha mãe trouxera para o sertão essas duas preciosidades, guardadas como jóias num caixotezinho em que também se espremiam os livros de história, geografia, português, e aritmética, um resumido espólio de professora primária. No mundo sertanejo, os livros eram verdadeiras relíquias, a ponto de serem inventariados em testamentos, como as terras, os bois e as casas. De noite - nesse tempo eu lia à noite -, meu pai consertava arreios e celas, minha mãe tecia varandas para as redes, e eu, deitado no chão de tijoleiras, folheava os dois livros sagrados, à luz de uma lamparina. Ainda não emendava as letras em palavras, mas seduzia-me pelas gravuras de traços finos, em que predominavam os tons do preto, acentuando o fantástico. Possuía vagas idéias do que significavam. Instruído pela minha avó, soube da existência de um Cristo, o mesmo homem barbudo e de olhar sereno que ocupava a parede principal da nossa sala. No livro, ele aparecia carregando uma cruz, açoitado, caído ao chão. Tamanha barbaridade contra o pobre inocente merecia castigo. Os algozes não podiam ficar impunes e eu estava ali para exercer a justiça, embora tardia. Orientado por meu pai, impaciente com carretilha e sovela, identificava os homens cruéis. Vez por outra errava o culpado e castigava um apóstolo inocente.
- E esse? - perguntava.- Esse é ruim, pode matar.
Sem compaixão, eu molhava o dedo com cuspe e esfregava a figura do soldado até que não restasse sombra do facínora. E assim, dizimei legiões inteiras, num precoce aprendizado de leitura. Antecipei em muito as pedagogias modernas, os métodos de aprendizado em que se valoriza o tato, o olfato e o paladar.
A "Bíblia" tornou-se o meu livro de cabeceira, ou o mais visceral de todos os livros de que me aproximei. Alheio aos significados religiosos, aos cânones de judeus, católicos e protestantes, pude deliciar-me em sua vasta literatura, na poesia, na história, no mar de narrativas emendadas umas nas outras, como nas "Mil e uma Noites". Decifrando suas páginas, tive ciência da leitura e da escrita, que considero os mais elevados conhecimentos legados ao homem. Reconheci nas paragens bíblicas, os mesmos desertos de sertões nordestinos. Nos pastores de bois, carneiros e cabras, os meus familiares. Nas leis de hospitalidade e nos códigos de honra, as semelhanças sertanejas.
Um antepassado meu, vaqueiro e padre, um dos primeiros colonizadores do sertão cearense, amancebou-se com uma índia jucá e gerou doze filhos. Imaginei que todos nasceram homens, e que fundaram casas e descendências iguais às doze tribos de Israel. Se não foi assim, não tem importância, pois se escrevem os livros misturando realidade e mentira. Um psicanalista afirmaria que preenchemos com literatura o "buraco da falta", querendo dizer com isso que as certezas são fragmentárias, que nossa história pessoal é cheia de fabulação. De maneira bem mais simples, o poeta Pinto do Monteiro recitava:
"Eu só comparo esta vida / à curva da letra 's'/ tem uma ponta que sobe / tem outra ponta que desce / e a volta que dá no meio / nem todo mundo conhece". "A volta que dá no meio", seria o "buraco da falta"?
A "Bíblia", um livro possível de se ler de todas as maneiras, é o lastro de histórias a que podemos recorrer sem credo religioso ou com fé religiosa. Inesgotável, possui as imagens dos sonhos, a épica, a tragédia, a poesia, a sabedoria, a invenção, a genealogia, a retórica e os números. Livro que contém todos os livros. Merece ser lido como eu o lia na infância, imaginando-o escrito pelo povo sertanejo, pessoas como o meu pai ateu e o meu tio procriador, que povoaram as terras cearenses de gado, homens e mulheres, num novo Gênese.

Ronaldo Correia de Brito nasceu em Saboeiro no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no ano de 2007. Escreveu os livros de contos As Noites e os Dias (1997), editado pela Bagaço, Faca (2003), Livro dos Homens (2005), e a novela infanto-juvenil O Pavão Misterioso (2004), todos publicados pela Cosac Naify. Dramaturgo, é autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, Arlequim, e o romance Galiléia pela Alfaguara. Escreveu durante sete anos para a coluna Entremez, da revista Continente Multicultural, e atualmente assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

RESTOS - MÁRIO ARAÚJO






Sem introdução. Direto ao assunto. Restos, livro de contos de Mário Araújo devia trazer aquelas famosas cintas onde estaria escrito URGENTE. É isso mesmo, atento leitor, se faz urgente a leitura desses vinte contos sobre amizade. Você deve estar desconfiando desse tosco resenhista pois na certa já deve ter lido que os contos tem como tema a solidão e a morte, não é mesmo?Então pergunto: existe amizade mais estreita do que essa entre solidão e morte? Não seria a morte mera solidão desprovida de movimento? Sendo ou não, encaminho meu desprezo e medo. Mas prometi que não teria introdução e quase quebro a promessa.Voltemos a Restos, pois. De cara o leitor recebe o conto que empresta título ao livro, um homem acompanha a retirada dos restos mortais de seus familiares pois é preciso abrir espaço para o corpo do pai.-Pra sair daqui têm que estar somente os ossos, Marcílio explicou."E quanto tempo leva?" "Nesse caso, com caixão de madeira, pode levar até três anos pra sumir tudo e os ossos ficarem limpinhos." A medida em que Marcílio, o funcionário do cemitério, vai retirando os restos dos parentes, esses vão despertando no homem, no conto ele não tem nome, lembranças . Sobre a avó não fala nada, precisava ficar mais um tempo, dos sapatos, ainda conservados, do tio vem a lembrança da sua teimosia ,e por fim o pedido para não abrir a gaveta que guardava os restos da sua mãe.Já havia espaço suficiente para o cadáver recente. Marcílio conclui seu trabalho carregando sacos com ossos dos dois homens. Entre lembranças, elas costumam ser tristes e num cemitério não tem como evitá-las, o homem sente vontade de urinar. A necessidade prosaica o impede de ver o destino final dos sacos com os ossos.Temática sombria em tom poético, a mesma que escutei vinda do Alvorino, meu pai, relatando a mesma cena quando do remanejamento dos restos de Doralina, minha mãe, e Hildebrando, meu avô. Depois disso é como diz o personagem sem nome do conto: “Abaixei-me e vi, no espelho, que meu rosto era agora uma síntese de elementos que não existiam mais.”
Perdoe, pragmático leitor, caso o exemplo pessoal o desagrade, a culpa é do Mário Araújo que escreve sobre essas cenas do nosso inevitável cotidiano e nos leva a visitar, mesmo que de passagem, nossa rascante solidão. E medo. Sim, medo, ó escapista e espiritualizado leitor.O conto seguinte Rauziclíni, narra a solidão de uma brasileira desempenhando o papel de faxineira numa cidade americana, trata-se de precisa síntese do desamparo em terra estranha. É o conto frio do livro, o clima da narrativa invade o leitor. E frio não pode ser sinônimo de solidão e morte? “Ao primeiro passo, atolou o pé no gelo cremoso e macio e, sem entender exatamente por quê, começou a chorar.”Em Todos riram, quatro amigos vão de Brasília a Goiânia assistir a um jogo da seleção brasileira de futebol. Durante a viagem os temas das conversas variam do futebol às mulheres passando pela imensidão do país, suas peculiaridades lingüísticas e o comentário sobre os nomes dos jogadores do futebol, de Maiconsuel a Richarlyson. Na viagem de volta ao parar em um posto de gasolina, um lugar em meio ao nada, gastam conjecturas na tentativa de descobrir como o velho frentista fazia para ir e vi àquele seu solitário trabalho. “O que eu tenho de idade/ Centopéia tem de perna/ Pois meu mais belo momento/ Amado amadurecimento/Já não é coisa moderna.” E entre o sono e o cansaço o silêncio desperta oferecendo a solidão num nome de mulher. Futebol 1, Futebol 2 e Futebol 3, contos de página e meia onde a solidão e a tristeza são sintetizadas de forma seca e precisa, como o olhar de um goleiro em direção da bola que repousa no fundo da sua goleira num misto de desprezo e ironia. São histórias onde o futebol deixa de ser o circo convencional e se transforma no patético manicômio de nossa trágica pátria.“O choro dos derrotados. Gás lacrimogêneo dilacerando os olhos .”Importante ressaltar que a matéria prima utilizada por Mário Araújo não é nenhuma novidade, no entanto a maneira como a utiliza, a prosa poética , o ritmo imposto à narrativa, transformam solidão e morte num território quase inexplorado. O autor, conforme Emmanuel Lévinas, sabe que se “a palavra proporciona a matéria do artista” também se faz necessário a excelência no trato desses ingredientes. E nesse quesito Mário dá uma lição após a outra. Talvez a mais sutil seja, diante da sisudez da temática, a aparente brincadeira com a linguagem além da humanização precisa de seus personagens onde nenhum padece além da normalidade. Na verdade, os contos de Restos podem ser apreendidos como suspiros de uma humanidade cruel e ao mesmo patética.Crioula apresenta a brisa da morte na figura da anciã que desperta a ira de Margarida, conto antológico que remete à vida de Mané Garrincha e a cantora Elza Soares, triste e primoroso conto.“A senhora tem setenta e cinco anos, o calçamento da rua, mais de cem, e do envelhecimento de ambos resulta uma situação amplamente desvantajosa para a primeira, que, sozinha, tenta descer a rua onde mora em direção ao banco.”
Na tentativa vã de brincar com a linguagem, os sem talento a ofendem. Temos aí os imitadores de Saramago a inventar longos períodos desprovidos de pontuação às frases iniciadas com minúsculas. O patético sempre é constrangedor. Mas não inclua Mário Araújo nessa laia, ele brinca sério com a linguagem como você poderá confirmar em Ancião ansioso, mais um biscoito fino desse Restos. “Mas se Jesus prega, prega-se Jesus. E foi assim que deram um jeito nela, quando o sujeito arrastou-a para um ponto entre duas paredes e lhe sapecou uma bela aula de canto, o suco dele no sulco dela.” A desforra é isso mesmo, vingança. Duas faces da solidão, homem seqüestra, estupra e mata uma jovem. Testemunha o persegue até capturá-lo e fazer justiça com as próprias mãos. A outra face da solidão é a violência perpetrada pelo justiceiro. Nada de novo, mero relato das possibilidades do humano. O trecho ao final desta resenha faz parte desse conto. Certo ou errado narra uma hora e meia da vida de um jovem que aguarda a abertura da sala de cinema para então poder misturar sua solidão com a escuridão “A perspectiva de regredir á situação de uma hora atrás me causa grande desalento.”
Atento leitor, permita um puxão de orelhas, carinhoso porém, note que nos contos de Restos não vislumbramos uma solidão estática, há resistência de parte dos envolvidos. O que também não implica em vitória, mas num debater-se constante.O conto A imagem apresenta a solidão de uma imagem de Jesus que é transferida de uma igreja em ruínas para a casa confortável de um médico que é transformada em santuário com direito a peregrinação. Aqui temos a sutileza na abordagem do tema da religiosidade deixando à mostra que mesmo a espiritualidade exige certa dose de conforto. Triste, leve, verdadeiro, infelizmente viver também é isso; domesticar o cinismo. “O próprio Jesus parecia bem feliz de estar ali. Certamente jamais estivera num lugar como aquele, com tamanho conforto cercado de tantas atenções e afeto.”
Quatro cenas de Brasil não precisa de comentário, são elas: Bala, Bola, Bunda, Bíblia, mas não consigo me conter, perdoe paciente leitor: “-Faz tempo que o Pastor Jônatas pastoreia este rebanho?” - “Já faz muitos anos. Desde que saiu da cadeia.O Pastor Jônatas cumpriu seis anos por ter matado um homem.” Oliveira, Fdp!!! é mais um achado do autor, a parcela tragicômica e fantástica de Restos, ou dos restos de uma existência onde um velho vocifera contra sua própria decrepitude.Um novo conceito é o relato detalhado de um seqüestro e se mais não revelo sobre esse conto é para não atrapalhar o prazer de sua leitura e seu desfecho genial. A solidão combinada a uma mediocridade abastada é capaz de inventar prazeres onde a vida é material de segunda mão.Viagem 1, Viagem 2, Viagem 3, três contos a combinar morte e futuro, esperança e resignação, solidão e velhice. A doce crueldade de um autor. Não há trégua nos contos de Mário, o leitor está em segundo plano, cabe a ele estabelecer as rotas de fuga ou buscar a companhia de nuvens.“Marta - esse era seu nome - jamais tivera a oportunidade de ser apresentada a si mesma. Faltara-lhe aquele momento de solidão em que, na ausência de uma vizinhança, trava-se o conhecimento de si.” Em Solo Mário oferece ao leitor o poder da escolha, se bem que para dar partida à história tão somente, pois sabe ele que o mais importante é sempre o final. Permite que o leitor escolha entre quatro possibilidades de abertura para a história de um músico frente a seus dilemas, onde geralmente não se permite espaço para a existência da morte. Sobretudo da própria morte.“Há muito tempo que tudo que via de si mesmo eram as mãos. A única parte do corpo que uma pessoa vê todos os dias da sua vida, pensou. Do rosto, apenas as lembranças e um par de fotografias que trouxera na bagagem.” Palimpsesto é amálgama de ansiedade e solidão de um escritor que envia seu primeiro romance à apreciação de João Ubaldo Ribeiro. Num primeiro contato dá impressão da parte solar de Restos, mas não embarque nessa canoa, desatento leitor. Concentra-se nessas linhas a mais fiel fotografia da nossa miséria existencial, ela que nos transforma em permanentes pedintes além de deixar a mostra aleijões a espera da bengala alheia que abrirá as portas das oportunidades. Com escritores a cena é das mais comuns. Mendigamos textos a nos recomendar, telefonemas a editores elogiando nossos livros e, nesse vai e vem das influências, os talentos evaporam e as bobagens e os tolos bem relacionados infestam as Flips e as Flaps da vida. Por favor, afobado leitor, não me pergunte o que é Flap. Aproveite seu tempo lendo Restos.“Gosto do meu nome. Mas um nome sozinho não valia muito naquelas circunstâncias.Precisava de sobrenomes, de preferência dois, três, quatro até.Os sobrenomes empurram o nome; por isso, quanto mais, melhor.” Encerra o livro Corpo, sem ironias e sem gracinhas, aqui fecha-se o caixão.“ Ninguém merece deixar esta vida sem seus ritos.”
Afortunado leitor, concluída a leitura de Restos fica um gostinho de quero mais e se você for também um leitor curioso e pretender sair em busca de algo semelhante, não perca seu precioso tempo. Modestamente, vá por mim. Recomece a leitura. Garanto que valerá a pena, não há riscos. Risco é viver , mesmo com todos os atenuantes do consumismo, mesmo evitando pensar e falar sobre velhice, solidão e morte, resta a certeza inquestionável; o nosso horizonte é o chão.

TRECHO

Tirei o pé de cima e me agachei diante daquela pele fustigada.Cheguei tão perto que podia ver os espaços entre as esfoladuras, amostras do terreno tal como fora. A respiração também se alterara, e um assovio agudo se fazia ouvir acompanhando o ar que saía. Bati mais vezes, com a coronha do revólver e em seguida com os próprios punhos, sentindo um certo nojo ao perceber os dentes por trás dos lábios, a cartilagem por trás do nariz. Levantei-me já um pouco cansado, mas continuei desferindo chutes pelo corpo todo, obrigando-o a assumir formas insólitas. Ora parecia um caracol, ora um arco, ora a letra L. Cansei, finalmente, e contemplei a estranha massa orgânica que jazia a meus pés. Não era ninguém que eu conhecesse aquele um deitado no chão, macerado pelos seus próprios fluidos, movendo-se por espasmos. O assassino que eu tanto execrara, que desejara pelo avesso e com quem sonhara acertar contas entre quatro paredes, agora fugia de mim tornando-se outro.As pálpebras permaneciam teimosamente abertas. E foi justamente aquele olhar congelado e sem brilho que me fez lembrar da moça na segunda foto do jornal. Compreendi então que meu plano estava arruinado, total e definitivamente. William sem escondera para sempre no olhar da sua vítima e agora me empurrava, alma abaixo, um incômodo sentimento de piedade.O golpe fatal, no entanto, ainda estava por vir. E veio quando, com enorme esforço, ele tentou balbuciar algo.No primeiro instante, foi como se estivesse acometido por uma constipação de palavras, e nenhum som inteligível saiu da sua boca. Numa segunda tentativa, porém, uma voz frágil escorreu para fora. Não passava CE um guincho rouco, inimaginável algumas horas antes, mas continha o que poderia haver de mais terrível: um pedido de perdão. Sem ter escolha, aceitei. Restos - Mário Araújo - Bertrand Brasil-188 págs.

O AUTOR

Mário Araújo nasceu em 1963, em Curitiba. Tem contos publicados em jornais literários, em antologias e na internet. Seu livro de estréia A Hora Extrema, recebeu o Prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas, em 2006.
Luíz Horácio nasceu em 1957, em Quaraí (RS). É professor de língua portuguesa e literatura, e coordena o curso de pós-graduação Literatura-produção literária, das Faculdades Monteiro Lobato, de Porto Alegre. Colabora com os jornais O Globo, Jornal do Brasil, Rascunho e revistas. É também roteirista, documentarista e autor teatral. Escreveu os livros Perciliana e pássaro com alma de cão - ed. Conex e Nenhum pássaro no céu - ed. Fábrica de Leitura.

sábado, 15 de novembro de 2008

MITOLOGIA GREGA



Entendendo a Mitologia Grega

A Mitologia Helênica é uma das mais geniais concepções que a humanidade produziu. Os gregos, com sua fantasia, povoaram o céu e a terra, os mares e o mundo subterrâneo de Divindades Principais e Secundárias. Amantes da ordem, instauraram uma precisa categoria intermediária para os Semideuses e Heróis.



Os gregos antigos adotavam o Politeísmo Antropomórfico, ou seja, vários deuses, todos com formas e atributos humanos. Religião muito diversificada, acolhia entre seus fiéis desde os que alimentavam poucas esperanças em uma vida paradisíaca além túmulo, como os heróis de Homero, até os que, como Platão, acreditavam no julgamento após a morte, quando os justos seriam separados dos ímpios. Abarcava assim entre seus fiéis desde a ingênua piedade dos camponeses até as requintadas especulações dos Filósofos, e tanto comportava os excessos orgiásticos do culto de Dioniso como a rigorosa ascese (exercício espiritual) dos que buscavam a purificação.
Os primeiros dados existentes sobre a religião grega são as Lendas Homéricas, do século VIII a.C., mas é possível rastrear a evolução de crenças antecedentes. Quando os indo-europeus chegaram à Grécia, já traziam suas próprias crenças e deuses, entre eles Zeus, protetor dos clãs guerreiros e senhor dos estados atmosféricos. Também assimilaram cultos dos habitantes originais da península, os Pelasgos, como o oráculo (resposta de um deus a quem o consultava) de Dodona, os deuses dos rios e dos ventos e Deméter, a deusa de cabeça de cavalo que encarnava o ciclo da vegetação.
A religiosidade popular evidenciava-se nos festejos tradicionais, em geral de origem camponesa, ainda que remoçada com novos nomes.
Os gregos antigos enxergavam vida em quase tudo que os cercavam, e buscavam explicações para tudo. A imaginação fértil deste povo criou personagens e figuras mitológicas das mais diversas. Heróis, deuses, ninfas, titãs e centauros habitavam o mundo material, influenciando em suas vidas. Bastava ler os sinais da natureza, para conseguir atingir seus objetivos. A pitonisa, espécie de sacerdotisa, era uma importante personagem neste contexto. Os gregos a consultavam em seus oráculos para saber sobre as coisas que estavam acontecendo e também sobre o futuro. Quase sempre, a pitonisa buscava explicações mitológicas para tais acontecimentos. Agradar uma divindade era condição fundamental para atingir bons resultados na vida material. Um trabalhador do comércio, por exemplo, deveria deixar o deus Hermes sempre satisfeito, para conseguir bons resultados em seu trabalho.
Os camponeses cultuavam Pã, deus dos rebanhos, cuja flauta mágica os pastores tentavam imitar; as ninfas, que protegiam suas casas; e as nereidas, divindades marinhas.
Pode-se dizer que o sincretismo, ou fusão pacífica das diversas religiões, foi a característica dominante do período Helenístico.


Psicanálise e mitologia - Os grandes temas mitológicos são centrais para a psicanálise desde sua origem. De um lado, eles foram objeto de análise, de outro, representaram um apoio para sustentar as idéias de Freud, como forma de demonstrar que suas descobertas transcendiam a singularidade de seus pacientes. Todas as grandes questões humanas acham-se expressas no mito: o singular e o universal; como tornar-se o que se é; o desejo, a vida e a morte.




Os principais seres mitológicos da Grécia Antiga
Heróis
: seres mortais, filhos de deuses com seres humanos. Exemplos : Herácles ou Hércules e Aquiles.
Ninfas : seres femininos que habitavam os campos e bosques, levando alegria e felicidade.
Sátiros ou Faunos : figura com corpo de homem, chifres e patas de bode.
Centauros : corpo formado por uma metade de homem e outra de cavalo.
Sereias : mulheres com metade do corpo de peixe, atraíam os marinheiros com seus cantos atraentes.



Górgonas : mulheres, espécies de monstros, com cabelos de serpentes. Exemplo : Medusa.
Quimeras : mistura de leão e cabra, soltavam fogo pelas ventas.

Principais deuses gregos
Zeus
- deus de todos os deuses, senhor do Céu.
Afrodite - deusa do amor e da beleza.
Poseidon - deus dos mares.
Hades - deus dos mortos, dos cemitérios e do subterrâneo.
Hera - deusa dos casamentos e da maternidade.
Apolo - deus da luz e das obras de artes.
Artemis - deusa da caça.
Ares - divindade da guerra.
Atena - deusa da sabedoria e da serenidade. Protetora da cidade de Atenas.
Hermes - divindade que representava o comércio e as comunicações.
Hefestos - divindade do fogo e do trabalho.



Origem dos deuses
No princípio era o Caos (fenda), que gerou Géia ou Gaia (a Terra), que por sua vez espontaneamente gerou Pontos (o mar) e Urano (o céu).
A união entre Géia e Pontos gerou as antigas divindades marítimas, praticamente personificadas em Nereu, o velho do mar, que podia assumir todas as formas, diluir-se edesmanchar-se na água. Nereu é representado como um ancião de barbas brancas ecorpo de peixe.
Géia e Urano tembém se uniram, deles surgindo os Titãs (Oceano, Coeus, Crius,Hyperion, Japetus e Cronos), e as Titânidas (Thétis, Phoebe, Mnemósine, Théia, Themise, Rhea). Os irmãos uniram-se às irmãs, gerando uma série de divindades.
Por escolha de Géia, coube a Cronos destronar o pai Urano, o que fez com uma foice de ferro, metal gerado por Géia. Cronos castrou Urano, e atirou ao mar a bolsa escrotal e o pênis, que provocaram uma onda de espuma manchada de sangue, da qual nasceu Afrodite.
Cronos, por sua vez, foi destronado por Zeus, um dos filhos de sua união com Rhea. Cronos temia ser destituído como o pai, por isso devorava seus filhos. Quando do nascimento de Zeus, Rhea enganou Cronos, dando-lhe uma pedra envolta em cueiros, e entregou a criança aos cuidados da ninfa Adrastéia, que o alimentou de mel e do leite da cabra
Amaltéia.
Zeus chegou rapidamente à idade viril, e com a ajuda de Géia, derrubou Cronos, forçando-o a ingerir um remédio de mostarda e sal; Cronos regurgitou primeiro a pedra,depois os demais filhos (Héstia, Hades, Posseidon, Hera e Deméter). Zeus e os deuses mais jovens combateram os Titãs, nas planícies da Tessália, e se apossaram do Monte Olimpo, que passou a ser a morada dos deuses. Na mitologia romana, Cronos é
Saturno.
O encadeamento dessa sucessão de divindades tem como uma de suas explicações a própria história da Grécia, cujos habitantes primitivos, os pelasgos, sofreram as invasões dos aqueus, eólios, jônios e dórios, tribos de origem indo-européia ou ariana, que penetraram e se fixaram na Grécia entre os séculos 20 e 12 a.C. Esses povos invasores fundiram seus mitos e lendas aos dos povos conquistados, daí resultando as diversas versões em torno da origem dos deuses, bem como a variação dos padroeiros das cidades e regiões.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

VICTOR HUGO - OS MISERÁVEIS



VICTOR HUGO - Nasceu em Besançon , França em 26 de fevereiro de 1802 e morreu em Paris em 22 de maio de 1885, Filho de Joseph Hugo um general do Império e de Sophie Trébuchet. Muito jovem, ainda, compôs numerosos poemas. Aos quinze anos recebeu um prêmio em um concurso de poesia da Academia Francesa. A partir desse momento resolveu dedicar-se à carreira literária. Apaixonado, generoso e dotado de uma extraordinária capacidade de trabalho, Hugo escreveu uma obra magistral e variada. A partir de 1822, integrou-se ao romantismo e logo transformou-se no porta-voz desse movimento. Nos seus escritos reserva lugar preponderante aos estados de alma. Em 1830 estréia "Hernani" obra teatral que representa o fim do classicismo. Essa obra expressa novas aspirações da juventude. para Hugo começa então um período de fecundidade.


OS MISERÁVEIS - É uma narração de caráter social que denuncia as injustiças da França do século XIX. Considerada sua obra maestra. Os cenários são descritos com riqueza de detalhes o que nos permite visualizar cada cena como se fizéssemos parte dela. Denuncia a miséria, a fome, a desigualdade social, empregados explorados por seus patrões.
Essa obra é considerada pelos historiadores, como a mais completa e fiel na descrição da Batalha de Waterloo, na qual Hugo presenciou, como testemunha ocular e a descreveu com minúcias.
ENREDO -No início do século XIX, na França, Jean Valjean rouba um pedaço de pão para os sobrinhos famintos e é injustamente condenado a prisão (galés) e a marginalidade. Após cumprir 19 anos de prisão com trabalhos forçados, Jean Valjean é acolhido por um gentil bispo Monsenhor Benvindo, que lhe dá comida e abrigo. Mas a revolta que se acumulou durantes os tempos de prisão, fez com que no meio da noite ele roubasse a prataria e agridesse seu benfeitor, mas quando Valjean é preso pela polícia com toda aquela prata, ele é levado a presença do bispo, que confirma a história, de diz ter dado a Valjean toda a prataria e ainda pergunta por qual motivo ele esqueceu os castiçais, que devem valer pelo menos dois mil francos.
Este gesto nobre do religioso, devolveu-lhe a fé que aquele homem embrutecido tinha perdido.
Após nove anos, com o nome de senhor Madeleine, ele se torna prefeito e principal empresário em uma pequena cidade, mas sua paz acaba quando Javert, um guarda da prisão que pensa tê-lo reconhecido, apesar das roupas finas e modos educados. Passa a seguir seus passos, porque Valjean nunca se apresentou para cumpir o livramento condicional. A penalidade para esta falta é prisão perpétua. Javert não consegue provar que o prefeito e Jean Valjean são a mesma pessoa.
JEAN VALJEAN - Descrição do personagem feita Victor Hugo:
Jean Valjean, de humilde origem camponesa, ficara órfão de pai e mãe ainda pequeno e foi recolhido por uma irmã mais velha, casada e com sete filhos. Enviuvando a irmã, passou a arrimo da família, e assim consumiu a mocidade em trabalhos rudes e mal remunerados (...). Num inverno especialmente rigoroso, perdeu o emprego, e a fome bateu à porta da miserável família. Desesperado, recorreu ao crime: quebrou a vitrina de uma padaria para roubar um pão. (...) Levado aos tribunais por crime de roubo e arrombamento, foi condenado a cinco anos de galés. (...) Mesmo na sua ignorância, tinha consciência de que o castigo que lhe fora imposto era duro demais para a natureza de sua falta e que o pão que roubara para matar a fome de uma família inteira não podia justificar os longos anos de prisão a que tinha sido condenado.
FRAGMENTO DO LIVRO
Jean Valjean foi conduzido diante dos tribunais daquele tempo por "roubo e arrombamento durante uma noite numa casa habitada". Jean Valjean foi declarado culpado. Os termos do código eram categóricos. Nossa civilização tem momentos terríveis: são os momentos em que uma sentença anuncia um naufrágio. Que minuto fúnebre este em que a sociedade se afasta e relega ao mais completo abandono um ser que raciocina! Começou por julgar a si mesmo. Reconheceu não ser um inocente injustamente punido. Concordou que havia cometido uma ação desesperada e reprovável, que, talvez, se tivesse pedido, não lhe haveriam de recusar o que roubara, que, em último caso deveria confiar na caridade ou no próprio trabalho, que afinal, não era razão suficiente afirmar-se que não pode esperar quando se tem fome. Era necessário, portanto, ter paciência... porque afinal era absurdo ele, infeliz e mesquinho como era, querer pegar toda uma sociedade pelo pescoço, e ter pensado que é pelo roubo que se foge à miséria, pois é impossível sair-se da miséria pela porta que leva à infâmia. Enfim, ele estava errado. Depois deve ter perguntado a si mesmo: Nessa história toda, o erro era só dele? Era igualmente grave o fato de ele, operário, não ter trabalho e não ter pão. Depois de a falta ter sido cometida e confessada, por acaso o castigo não foi por demais feroz e excessivo? Onde haveria mais abuso: da parte da lei, na pena, ou da parte do culpado, no crime? Não haveria excesso de peso em um dos pratos da balança, justamente naquele em que está a expiação? Por que o exagero da pena não apagava completamente o crime, quase que invertendo a situação, substituindo a falta do delinqüente pela da Justiça, fazendo do culpado a vítima, do devedor credor, pondo definitivamente o direito justamente do lado de quem cometeu o furto? Pode a sociedade humana ter o direito de sacrificar seus membros, ora por sua incompreensível imprevidência, acorrentando indefinidamente um homem entre essa falta e esse excesso, falta de trabalho e excesso de castigo? Não era, talvez, exagero a sociedade tratar desse modo precisamente os seus membros mais mal dotados na repartição dos bens de fortuna, e, conseqüentemente, os mais dignos de atenção? É próprio das sentenças em que domina a impiedade, isto é, a brutalidade, transformar pouco a pouco, por uma espécie de estúpida transfiguração, um homem em animal, às vezes até em animal feroz. As sucessivas e obstinadas tentativas de evasão, bastariam para provar o estranho trabalho feito pela lei sobre a alma humana. Jean Valjean renovou as fugas, tão inúteis e loucas, toda vez que se apresentou ocasião propícia, sem pensar um pouquinho nas conseqüências, nem nas vãs experiências já feitas. Escapava impiedosamente, como o lobo que encontra a jaula aberta. O instinto lhe dizia: "Salve-se". A razão lhe teria dito: "Fique"! Mas, diante de tentação tão violenta, o raciocínio desaparecia, ficando somente o instinto. Era o animal que agia. Quando era novamente preso, os novos castigos que lhe infligiam só serviam para torná-lo mais sobressaltado. A história é sempre a mesma. Essas pobres criaturas, carecendo de apoio, de guia, de abrigo, ficam ao léu, quem sabe até, indo cada uma para seu lado, mergulhando na fria bruma que absorve tantos destinos solitários, mornas trevas onde, na sombria marcha do gênero humano desaparecem sucessivamente tantas cabeças desafortunadas.
OBRAS
Os Miseráveis; O corcunda de Notre Dame; Nossa Senhora de Paris; O homem que ri; Noventa e três; O arquipélago da mancha; Os trabalhadores do mar; O último dia de um condenado; Han da islândia; O segundo bug-jargal; Napoleão, o pequeno; História de um crime; Coisas que eu vi; Literatura e filosofia entremeados; Atos e palvras; Pós-escrito de minha vida; Em viagem; Cartas à noiva. Teatro: Hernani; Teatro de Lorme; O rei se diverte; Lucrécia Borgia; Maria Tudor; Ângelo; A esmeralda; Ruy Brás; Os burgraves. Poesia: Odes e baladas; As orientais; As folhas de outono; Os cantos do crepúsculo; As expiações; As vozes interiores; Os raios e as sombras; As contemplações. Teatro em verso: A lenda dos séculos; Canções da ruas e dos bosques; O ano terrível; Os anos funestos; A arte de ser avô; O burro; A piedade suprema; Religião e religiões; Toda a lira; Fim de satã; Os quatro ventos do espírito; O Papa.

OBRAS NO ORIGINAL
1822 Odes et Poésies Diverses 1823 Odes; Han d'Islande 1824 Nouvelles Odes 1826 Bug-Jargal; Odes et Ballades 1827 Cromwell, including Préface 1828 Odes et Ballades (augmented) 1829 Les Orientales; Le Dernier Jour d'un Condamné 1830 Hernani 1831 Notre-Dame de Paris; Marion de Lorme; Les Feuilles d'Automne 1832 Le Roi S'Amuse 1833 Lucrèce Borgia; Marie Tudor 1834 Littérature et Philosophie Mêlées; Claude Gueux 1835 Angelo, Tyran de Padoue; Les Chants du Crépuscule 1836 La Esmeralda (libretto) 1837 Les Voix Intérieures 1838 Ruy Blas 1840 Les Rayons et les Ombres 1842 Le Rhin 1843 Les Burgraves 1851 Douze Discours; Treize Discours; Quatorze Discours 1852 Napoléon-le-Petit 1853 Châtiments; Oeuvres Oratoires 1855 Discours de l'Exil, 1851-1854 (first ten speeches of Actes et Paroles II) 1856 Les Contemplations 1859 La Légende des Siècles, Première Série 1862 Les Misérables 1864 William Shakespeare 1865 Les Chansons des Rues et des Bois 1866 Les Travailleurs de la Mer 1867 La Voix de Guernsey (Mentana) 1869 L'Homme Qui Rit 1870 Les Châtiments 1872 Actes et Paroles, 1870-1871-1872; L'Année Terrible 1874 Quatrevingt-treize; Mes Fils 1875 Actes et Paroles I, Avant l'Exil, 1841-1851; Actes et Paroles II, Pendant l'Exil, 1852-1870 1876 Paris et Rome; Actes et Paroles III, Depuis l'Exil, 1870-1876 1877 La Légende des Siècles, Nouvelle Série; L'Art d'Être Grand-Père; Histoire d'un Crime, I 1878 Histoire d'un Crime, II; Le Pape 1879 La Pitié Supréme 1880 Religions et Religion; L'Âne 1881 Les Quatre Vents de l'Esprit 1882 Torquemada 1883 L'Archipel de la Manche; La Légende des Siècles, Dernière Série 1886 La Fin de Satan; Théâtre en Liberté 1887 Choses Vues 1888 Toute la Lyre 1889 Amy Robsart; Les Jumeaux; Actes et Paroles IV, Depuis l'Exil, 1876-1885 1890 Alpes et Pyrénées 1891 Dieu 1892 France et Belgique 1893 Toute la Lyre, Dernière Série 1898 Les Années Funestes 1900 Choses Vues, Nouvelle Série 1901 Post-Scriptum de ma Vie 1902 Dernière Gerbe 1934 Mille Francs de Récompense 1942 Océan, Tas de Pierres 1951 L'Intervention.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

PORTAL DOMÍNIO PÚBLICO


DICA IMPORTANTE! Não deixe de acessar o portal Domínio Público:

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp


Nele você poderá obter as obras de Machado de Assis, Fernando Pessoa, Paulo Freire, Eça de Queirós, Dante Alighieri, e outros grandes destaques da literatura e Educação através de textos, vídeos, som em diversos idiomas. Confira!

CARLOS NEJAR

O MÁGICO DAS VERDADES
Conheci Carlos Nejar em 1973, na Casa dos arreios. Eu era pouco mais que um guri preocupado em jogar futebol e insistindo em enxergar as coisas que não são do costume do homem enxergar. Mal sabendo que existia uma chave para isso e se chamava poesia. Naquela época eu já lia Mário Quintana, no entanto, sentia falta de ler poesia que me fizesse tocar em algo, me aproximasse mais da realidade que eu almejava, não a que me prendia. Ainda hoje carrego na alma os versos:

Hoje cavarás teu rumor
entre as fúrias e o sol;
plantarás uma alegria
nos arrozais.
Hoje descerá o anjo da misericórdia
sobre esses que deploras
e por quem não podes chorar
que a lágrima é só tua, e única.
Arrancarás as chaves do solstício
ou as gavetas de um silêncio não revisto.
Hoje serás amado e amarás
Sem juros ou ágios.
Amanhã não
- que o amor esgota a razão.

Vim a conhecer pessoalmente Carlos Nejar quase três décadas mais tarde. Agora eu sei o que é lamentar um tempo que passou mudo. O tempo não perdoa o silêncio.
Como podem perceber, há muito que leio Carlos Nejar e até dia desses, certos acontecimentos soavam um tanto desafinados, ou melhor, incompreensíveis, dizendo melhor, inaceitáveis; quando o foco se voltava para o obra deste que é, sem dúvida, nosso maior poeta vivo. Duvidam? Então aponte outro autor capaz de reunir, quer na prosa, quer nos versos, a lírica sutil e lúdica de Mario Quintana, que outro escritor empresta vida e inconformismo à mesma natureza que Pablo Neruda reveste de monotonia e repetições? Querem mais? Pois bem. Quem mais se dispõe, e o faz com relevância, a tratar o social e as nuances da loucura como tão bem o fez Dyonélio Machado? E o mais importante, livre de ranços e de sentimentalismos infantis.
Para quem não sabe, sou daqueles que costumam se incomodar quando a incompreensão e muitas vezes o ciúme e a inveja elegem alguém que admiro como uma de suas vítimas. Estava prestes a permitir que a mágoa me conduzisse a essas veredas quando li Novalis: "Quanto mais verdadeiro, tanto mais poético."
Decidi reler Nejar. O que eu ainda não tinha, tratei de conseguir.
"Quanto mais verdadeiro, tanto mais poético."
"Quanto mais verdadeiro, tanto mais poético."
"Quanto mais verdadeiro, tanto mais poético."

A frase fez casa em minha cabeça e antes de se tornar incômoda, se mostrou esclarecedora.
Tempo, Liberdade e Imaginação. A natureza e a condição humana, apartadas dos lugares-comuns. A obra de Carlos Nejar.
Carlos Nejar, o poeta do romance, é o mágico das verdades. E por ser verdadeiro, cria um universo paralelo onde o realismo mágico não implica em alienação tampouco no maravilhoso. É um transbordamento de consciência social , erudição e religiosidade. De breve história do mundo: Não, não me curei
Ao me curar de esperança,
não me curei de Deus.
Não posso me curar nunca
de Deus, até que Ele me tome.
A eternidade só se cura
de eternidade.
E a fonte com o fogo.

Salta aos olhos a coerência que permeia sua obra, da importância estética à severidade ética, da lucidez criativa ao pleno domínio da linguagem. Conforme George Steiner: "A linguagem do poeta nos faz reconhecer algo que não sabíamos que conhecíamos."
O autor deixa nítida, ao longo de sua obra, sua relação com a terra, com suas raízes, da temática às expressões de cunho regionalista, do olhar único que empresta à paisagem pampiana ao rigor na utilização das palavras, também característico do gaúcho do campo.
Nejar é o poeta da sua terra e sua terra é o pampa e o pampa não aceita limites geográficos. O pampa é, e o pampa também está.
Sua condição de homem do pampa se faz notar através do olhar do poeta, a ausência de limites, o inconformismo humano além do horizonte. Alguns chamam isso de liberdade. Mas, infelizmente, ainda restam aqueles que se incomodam com isso.
O homem pampiano, no seu significado mais abrangente, utiliza o verso, a prosa, como ferramentas de construção, capaz inclusive de operar transformações na realidade. Não sei onde, mas já li, dito por Nejar: " Todas as coisas que eu canto e de que eu falo, são coisas que vivi, mesmo que estejam escondidas atrás de palavras, assumo. Quero assumir cada palavra até o fim porque quero estar lúcido até o fim."
A partir daí entendi o que Octavio Paz quis dizer ao afirmar que "os poetas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia." A de Nejar é inconfundível.
Ética e estética marcam a obra de Nejar, o poeta do romance, deixando ao leitor a impressão do escritor em permanente duelo consigo mesmo, eflúvios do garimpo em busca da palavra preciosa, no tamanho correto para a exatidão do espaço. O artista/criador/escritor, reflete o homem sério e sensível, rigoroso e terno, exigente e amigo.
E por falar em estética, ela nos sugere, ou exige?, comparações e por mais que eu relute, acabo me rendendo à essa regra do jogo.
Na contra-mão de alguns colegas que costumam compará-lo a Borges e João Cabral, pois então que o comparassem a Garcia Márquez, prefiro medi-lo com Virgílio e poderíamos enveredar pelo exame do significado do tempo e dos sonhos em suas obras.
Está lá, em Carta aos loucos: "A imaginação ultrapassa as teorias. E pode criar outra imaginação e mais outra, até que a palavra germine e pare o tempo."
Quando me refiro ao tempo é porque desde cedo sei do que ele é capaz, com sua honestidade, mas também com seus ardis e trapaças. Nejar, ainda hoje,me ajuda a domar o tempo. Porque no frigir dos ovos somos todos egoístas e tudo que buscamos é com a intenção de que seja pra sempre. Que o automóvel não enferruje, que o vaso nunca quebre , que as fotografias jamais se apaguem e aqueles que amamos estejam sempre à nossa disposição. Poucos admitem mas a verdade é essa. Logo cedo percebi a morte, o fim, isso num primeiro momento me abalou, me derrotou, por que continuar um jogo com o resultado estabelecido, onde todos perdem e o grande adversário invisível acumula regozijos cínicos? Minha infância foi a tentativa de evitar e depois compreender o veneno antiético do tempo. Pai, mãe, irmãos, amigos, ( "os amigos não morrem, tiram férias". C. Nejar- O Poço dos Milagres) um dia todos desapareceriam assim como já acontecera com meu gato, com meu cachorro de estimação e meus passarinhos. Minha assustada meninice me postava entre dois extremos: um de onde mal eu tinha saído e outro que jamais seria alcançado. Porém como quase toda criança, no meu caso com um pouco mais de dor, conseguia deixar de lado os pensamentos comprometidos com a realidade e junto com amigos visitava o jardim das fantasias. Cresci e optei pelo mundo da minha imaginação. Sua existência dependia de mim, se eu tinha os planos era por que a construção era viável. O objetivo maior era trapacear, enganar a morte, desviá-la daqueles que eu queria bem, que na verdade guardavam pedaços meus e quando de suas mortes, eu morreria também. Se a fantasia não me impediu de sofrer pelo menos me fez entender que algumas coisas têm o poder de iludir o tempo, de quebrar suas cadeias. E só pode ser algo que não exija espaço.
O poeta do romance, ainda no Carta aos loucos, ensina: "As civilizações se definem na agonia. E os homens precisam imaginar para estarem livres. E mais livres seriam, se usassem o dom de imaginarem-se livres. Até o desespero."
Então passei a dar mais atenção aos sonhos, feito o vagabundo cego procedente de Assombro que foi dar com os costados em Pontal do Orvalho:
"- O que se deu com você?
- Saímos porque havia muita coisa morrendo. Viemos dar aqui. É sina. Me conformei.
- A sina não é cega.
- Não e me conformei. Tinha família, filho.
- E depois?
- Perdi. A sina tem doideira e nenhuma luz.
- E as garrafas?
- É a única coisa que consigo equilibrar. O amor me desequilibrou.
- E a cegueira?
- Escuridão acostuma.Não me queixo. O que me falta...
- Caminho?
- É ter um sentido. Nosso bando não possui paragem. E nos entreajudamos. Temos sonhos.
- Sim.
- Sonhos que a todos domina, e absorvem. Enlouquecem. Quando dormimos, vagam debaixo das árvores. Depois até as árvores sonhavam. E as aves eram a continuação do sonho das árvores. Só os sonhos tinham memória, não os homens."

O Poço dos Milagres
Quanto a Gabriel Garcia Márquez, não vislumbro vantagem alguma para o colombiano, quem sabe a midiática?, pois se Gabo fundou Macondo e com ela toda uma mística, para ficarmos neste aspecto apenas, Nejar criou Assombro e Pontal do Orvalho e nelas permitiu personagens de grandiosidade tal que mais dia menos dia, merecerão demorados estudos.
No entanto, não me tomem por um ser exageradamente limitado a ponto de acreditar na pureza, e sendo Nejar homem refinado e culto, é natural que do acúmulo de leituras e conhecimentos sobressaia algumas influências. Estas porém são insignificantes e talvez advenha exatamente daí, afinal vivemos a era dos epígonos, a dificuldade de aceitação e reconhecimento da obra fundamental deste poeta maior. Fiquem atentos caros leitores, Carlos Nejar é Carlos Nejar, o poeta do romance. Que outro se apresenta com tais qualidades no nosso vasto planalto cultural?
Raríssimos poetas, artistas, professores infelizmente, guardam a noção de seres geradores de cultura. Sendo assim, não podem almejar Olimpos que os distancie do povo, de quem em última instância, representam a consciência coletiva. Em Nejar, podemos atestar essa consciência em livros como O Campeador e o Vento (1966), Canga (1971), O Poço do Calabouço ( 1974), Um País, o coração (1980). Poderia citar outros, para não dizer todos, mas prefiro fazer referência aos mais recentes: A Engenhosa Letícia do Pontal (2003) e O Poço dos Milagres(2005).
Tais títulos servem de prova à conduta deste poeta do romance: autêntica, sincera. Ciente de seu dever, não escolhe época para defender a liberdade, independente do momento político permanece em prontidão, atento, olhos e coração de seu povo. O tempo não verga o artista, lhe concede pincel e paleta. Harmonizar as cores, no entanto, não é para qualquer um. Requer conhecimento das exigências e das necessidades. É dever do verdadeiro artista, senão a criação, pelo menos o esboço desse mundo novo.
Vigilante e andarilho, como ser assim?
Conforme disse anteriormente, Nejar é um pampiano e o pampa acompanha o homem, se oferece a todos sem distinção, mas existem àqueles, como o poeta, capazes de reinventar, de aumentar, de se confundir com o pampa. A esses, costumamos chamar de guardiões do tempo.
Neste ano de 2006 Carlos Nejar completa 46 anos de poesia, metafísico e social, o poeta do romance, não me permite vislumbrar no horizonte literário outro criador tão íntimo das metáforas como o poeta gaúcho, metáforas estas que também servem de muletas para muitos daqueles que não se conformam com o brilhantismo e a relevância de sua lírica, apoiarem seu desdém, mas o que é a arte, senão metáfora? Creio que em Nejar também viceje filosofia das mais úteis, das mais práticas. Há quem duvide, mas filosofia e a poesia guardam lá seu parentesco.
Seus romances nos permitem o contato com o aforista Carlos Nejar, jamais piegas, sempre na hora certa, a exigir do leitor um momento para a reflexão que antecede o sorriso ou a lágrima de satisfação e enlevo. Um suspiro de paz. Feito o gaúcho, homem do campo, à sombra de uma figueira ou de um cinamomo, um gole de chimarrão e a mirada ao horizonte, sabedor de estar olhando para dentro de si.
Acusam-no de alienado e autor de uma obra hermética ao excesso.
Por partes: Hermético, hoje em dia, é tudo aquilo que o "critico literário", ou melhor, o jornalista que escreve sobre livros no jornal, via de regra com "incontestes conhecimentos de teoria literária e literatura comparada e vastas leituras", não consegue alcançar. Então o carimbo: hermético. O que depender deles, nossa literatura logo, logo será a mais hermética do planeta.
Alienado: Um momento para a gargalhada seguida da lágrima de nojo.
Decididamente, não leram um livro do Nejar até o fim. Como acusar de alienação um escritor que no auge da repressão escreveu os versos que seguem, denunciando a opressão e a injustiça que campeava por aqui?
O poema Canga, imperdível, o drama de Jesualdo Monte, homem do pampa, vítima das injustiças sociais, mesmo assim longe de demonstrar passividade, este Jesus do poeta, anseia por liberdade.
Até aqui, tudo bem? Perceberam algum hermetismo? Algum olor de alienação? Então sigamos.
A obra de Carlos Nejar transcende os limites do óbvio, do visível, do concreto, o poeta do romance faz uso da imaginação como poucos, talvez se originem aí as suspeitas infundadas de alienação. Mas façam-me o favor, até as estultices exigem limites.
Convido aos crédulos e aos incrédulos a um mergulho no poço, no Poço do Calabouço, e tirem suas conclusões.
A liberdade, a luta pela liberdade é uma constante na obra de Nejar, mas trabalhada com dignidade e sutileza, capacidade esta que identifico em número reduzidíssimo de autores, coincidentemente, todos gaúchos: Dyonélio Machado, Fausto Wolff e Érico Veríssimo.
O exame, nem precisa ser minucioso, da obra de Carlos Nejar permite concluir que a liberdade é íntima da solidariedade e o autor cerra fileira com os mais fracos, artista consciente de sua função, guardião dos sonhos, das esperanças e das liberdades.
Está em Árvore do Mundo o poema que segue.
Povo
I
Enchi meus cadernos
na extensão da infância.
Enchi meus cadernos
com letras de manhã,
domingos, florestas.
Enchi meus cadernos
de povo
e ao povo
enchi de mar.
II
Onde começo e acabo
é povo.
Onde o sol leva seu recado,
é povo.
Onde há pássaros,
é povo.
Onde o trator escava,
é povo.
E a plantação da noite:
a liberdade.
Para ilustrar o tópico solidariedade, permitam-me um trecho de um livro imprescindível, Carta aos loucos : " Mas o zumbir das vozes, chamou a atenção de um mendigo deitado no banco da praça, ali perto. E de mais outro, adiante, sob o cinamomo. Roupas gastas, olhos gastos - Alduno e Reberino - , condes de uma miséria nômade: com as barrigas expostas nos olhavam. Como se lhes permitíssemos viver.
Seus sapatos tinham buracos, e dedões saiam para fora. Fui falando para eles, falando. As diferenças se retraem. Se o Céu nos tolera, se o Oceano nos foge e a Noite não se entorta, não há classes na luz."

Enquanto isso, desconhecedores dos nossos grandes escritores, emprestamos nossos submissos e colonizados ouvidos a cantilena soporífera de Saramago.
Até quando?
"O tempo é uma inteligência que transluz, quando pergunta. E é ciência para o mistério de o destino ficar tempo e o tempo virar destino."
E o tempo que corre no pampa não guarda parentesco com nenhum outro tempo, quer da metrópole, quer da floresta, é um tempo exigente que obriga aos olhares nenhuma pressa e aos ouvidos a intimidade com o silêncio. Como autêntico pampiano o poeta presta reverência ao seu avô, um mensageiro do tempo, e apresenta sua terra, seus conterrâneos e suas tradições sem apelar para patéticos estereótipos ou carnavalescos arquétipos. A Espuma do Fogo traz o calor vivo fruto da união da fantasia com a audácia. Um dia, que já vai distante, minha filha referindo-se ao seu avô dizia estar com saudade do seu "pai antigo", talvez em sua inocência de começo de vida ela tenha encontrado a expressão correta e Carlos Nejar ao guardar seu avô Miguel nos escaninhos de sua infância lhe concede a imortalidade enquanto sabiamente conclui que o que forma, informa , transforma e..."velho é o tempo."
O poeta conhece como poucos os disfarces do tempo, dos ventos e as artimanhas da nostalgia, sabe que o tempo não costuma emprestar mas tem enorme prazer em cobrar e se a angústia não chega a ser uma coxilha intransponível tampouco o pampa transpira o orvalho acre do avesso da liberdade. Só mesmo a amplitude pampeana pode conceder o espaço e conceber as coxilhas da angústia, da nostalgia, do fogo, da espiritualidade e do amor.
A Espuma do Fogo é uma vasta janela onde se vislumbra a imensidão do pampa e as origens gauchescas amalgamadas a universalidade do poeta, legitimada na diversidade dos registros linguisticos em plena harmonia com a linguagem mais coloquial a vasculhar os rincões da memória deixando a certeza inconteste que cultivamos lembranças que nos farão menos solitários na hora da morte.
"No coice da estrela d'alva, ao amanhecer com as vinhas, eu fico. A morte é sozinha, por vezes, adolescente. Mas o pampa sabe sempre, com presteza o que ela sente."
Simbolismos e heroísmos na medida exata fazem de A Espuma do Fogo algo fora do comum no ambiente literário, em se tratando de poesia não resta a menor dúvida que estamos diante de uma obra incomum que permitirá aos desavisados, e infelizmente não são poucos, olhar para Carlos Nejar como se este fosse um peixe fora d'água quando na verdade este poeta imortal é água cristalina a dessedentar o tempo e os ventos. É vida.
E justamente da arbitrariedade da vida vem a tona seu sub produto mais valioso, a aventura humana comovente e cruel onde a liberdade é o prêmio único no embate de cartas marcadas e sendo assim, o que fazer nesse interregno onde a angústia , fruto da consciência, transcende o devaneio? Poderá a morte ensinar mais do que a vida? A resposta está na incessante busca.
O poeta pampiano não se acomoda tampouco se acovarda, impõe movimento e em sua sofisticada simplicidade busca a natureza, o lirismo de suas raízes, sem cair nas teias luminosas do escapismo e verseja na intenção de encontrar Deus.
Nejar guarda um misticismo sutil que ao aflorar permite ao poeta forjar palavras e expressões de uma sonoridade pouco usual atestando sua vitalidade e precisão das imagens, sinais que o individualizam como um pintor de cuja palheta saltam cores de um aço cortante manifestando seu amor a terra, aos seus familiares a sua Elza, ao tempo, ao vento....
"Deito com meu avô Miguel na terra. E quem te ama, Elza, é pampa, este vaso de oliveira e almas. Parras labaredas que a lareira abrasa, os rostos queimando, sem queimar a sarça. E deito-me , Elza, contigo no poema."
Em seu romance anterior Carlos Nejar nos encantava com Letícia, a mulher ideal, a imagem da mulher projetada em pleno céu, aquela merecedora do seu amor e dos seus enigmas.Uma nuvem livre, inquieta, aliada do tempo.
Aspecto pouco analisado na obra do pampiano Nejar é sua preocupação com o meio ambiente, Letícia subia num pé de amoreira em protesto contra a derrubada - Não podem! Esta árvore também sou eu!, repetindo o gesto de estudantes porto alegrenses na década de setenta. Da borda do Poço dos Milagres Nejar mostra o cuidado dos pescadores com o rio, os "peixes cheios de alma" e os pássaros. É importante dizer que se em A Engenhosa Letícia.... a protagonista estava bem definida desde o título, neste as personagens guardam o mesmo grau de importância. Talita não é mais nem menos que Viriato, cavalo, ora zaino, ora alazão, interlocutor e confidente da menina. O finado Dom Seráfico, prefeito à época de Letícia, embora apenas lembrado, não perde em significado para o Anjo chamado Gênero Humano. No entanto, sou capaz de apostar que a nuvem, a Letícia deste Poço dos Milagres, a personagem que ora permite a luz ora impõem a escuridão, sem dúvida nenhuma, é a literatura e o narrador parafraseando Nelson Rodrigues, teatrólogo famoso que transitou por Pontal: "- Os inteligentes estão matando o romance. E há que chamar os burros para salva-lo. - À s vezes de si mesmos." - com sua fina ironia nos obriga a refletir sobre o que não só as editoras com seus gênios por uma semana. estão fazendo para destruir a verdadeira literatura, mas também até que ponto nós leitores somos coniventes consumidores do lixo nacional e estrangeiro.
Abro um parêntese para tentar mostrar algumas razões que me levam a tratar a obra de Nejar com tamanha distinção Para tanto utilizarei um livro, por demais emblemático. O Carta aos loucos.
Amar é distinguir, separar, elevar, necessitar, estar à disposição, o resultado é a emoção. Pois bem, como evitar a emoção, mesmo no alvorecer da trama, quando o autor recebe o leitor com períodos como os que seguem ?
- O espírito em nós é como a água. Ao parar, apodrece.
E ela sorriu com as profundezas.Flutuava sob a lua. E me lembrei de um surdo ancestral que se habituara a repetir a mesma frase:
Duas coisas há que um homem desaprende: recurvar-se e calar.
E me calava. E obedecia à luz.
Mais adiante:
"Ao não me deixar falar, cheguei ao ponto de não escutá-lo. O silêncio é mais eloqüente do que a dor. E a dor, mesmo fanhosa, jamais será política. Não Tendo eu nada com a república que aplicava as aptidões de logro com o discurso tão diferente da ação.
Eu era um escrevente. Para uns, lúcido, e para outros, louco. Só liderava meus fantasmas sem governo."
Creio que o amor não seja pra sempre, pois é vivo e tudo que é vivo tem que morrer Mas o que me interessa é o mundo da fantasia e da minha imaginação o que me leva a acreditar num amor imortal. É isso. Não, eu não tenho 17 anos, tenho muito mais e não acredito em nada, nada mesmo que não seja produto da fantasia, do imaginado, do sonhado. Eu sempre sonhei com a relevância da arte, meus pais também. Tanto que permitiram os estudos da literatura e da música. O sonho naqueles dias de meninice já era sonhado, não eu não tenho 17 anos, tenho muito mais e acredito num sonho em especial, um sonho de liberdade e justiça.
Acreditar, tão somente, não basta é preciso viver a realidade com fantasia, fazer da vida, um sonho bom. Peço, no entanto, que não me obrigue a despertar na melhor parte. Viver é preencher o álbum dos acontecimentos. E só merece esse título aquilo que transforma. Um acontecimento pode ser o desabrochar de uma rosa, caso eu presenciasse, o passarinho rompendo a casca do ovo, sob o olhar deste aprendiz. No entanto isso nunca aconteceu, quando eu chego, eles já estão lá, a rosa e seu perfume, o pássaro e seu canto. Na minha vida foram raros os acontecimentos. Cedo, muito cedo, me dei conta que eu era apenas um fragmento. Daí a acreditar que o fragmento era do nada, um pó do futuro não foi preciso muita reflexão, confesso. Pai, amigos, filhos me mantinham num permanente recreio, por um tempo eles foram suficientes mas tudo tem um limite, o abismo me aguardava e eu, covarde, apenas olhava. Até que surgiu a literatura, Veríssimo, Dyonélio, Fausto, Lygia, Drummond... e hoje, sem afobação, posso amar muito mais a todos que me amam e aqueles que não são amados por ninguém. Já não me sinto um grão do nada mas um pedregulho do amor. Pela sua inestimável contribuição, Carlos Nejar, mestre e irmão, muito obrigado.
Com meu amor. Sem esgotar a razão.

Luíz Horácio
Professor de Literatura, escritor, autor dos romances Perciliana e o pássaro com alma de cão-ed.Conex e Nenhum pássaro no céu-Ed. Fábrica de Leitura.